quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O Momento Socrático: Cuidado e Conhecimento de Si Mesmo



Arlindo Picoli
Na Apologia de Sócrates, sabemos por meio de Platão, que Sócrates é o encarregado pelos Deuses de lembrar e incentivar os homens a ocuparem e cuidarem de si mesmos. Ao proclamar o cuidado de si em Atenas, ele abre mão de uma série de situações consideradas vantajosas, como fortuna e cargos de poder e que agindo assim, conseguiu despertar, pela primeira vez, os cidadãos de Atenas de um profundo sono. Portanto o cuidado de si é a realidade mais admirável, pois proporciona algo equivalente a uma vida consciente, ativa e desperta.
Como relatado em O Banquete, Sócrates dominava a anakhóresis, prática do retiro em si mesmo, bem como a técnica de resistência. Andava descalço sobre o gelo com mais facilidade do que faziam seus companheiros calçados, e podia manter-se imóvel durante todo um dia e uma noite. Tudo isso parece indicar a sua maestria nas técnicas do cuidado de si.
Quando o “conhece-te a ti mesmo” surge na filosofia, precisamente com Sócrates, aparece como uma aplicação particular de uma regra mais geral: o cuidado de si. No Primeiro Alcibíades, Sócrates só decide abordar Alcibíades porque percebeu que ele não se contenta mais em desfrutar de sua beleza, riqueza e influência; ele quer se tornar um político, ele quer “transformar o privilégio de status, a primazia estatutária em governo dos outros” (FOUCAULT, 2004, p. 44). Sócrates diz que ele deve aplicar seu espírito sobre si mesmo, pois, para ser um político, deve o indivíduo saber as qualidades que possui. Ele deve pensar nos seus rivais de dentro de Atenas, e também nos de fora da cidade, sejam espartanos ou persas. Tanto os rivais de Esparta quanto os da Pérsia tiveram uma educação melhor que Alcibíades, pois ele ficou aos cuidados de um escravo ignorante. Conhecendo-se a si mesmo prudentemente, ele pôde perceber sua inferioridade não só na educação, mas também na riqueza e na incapacidade de ter um saber, uma tékhne a qual compensasse essas diferenças. No diálogo que trava com Sócrates, Alcibíades entende que não é capaz de definir o que é o bom governo da cidade, e admite ser possível que tenha sempre vivido em estado de ignorância. E é neste momento que Sócrates o anima, afirmando, para tanto, que se ele tivesse percebido isto com cinqüenta anos, não seria nada fácil tomar-se a si mesmo em cuidado: epimelethênai sautou, mas ao contrário, ele está justamente na idade certa para isto (FOUCAULT, 2004, p. 47).
No Primeiro Alcibíades, Foucault destaca quatro características do cuidado de si. Partindo de um privilégio, em primeiro, ocupar-se consigo mesmo é condição para governar os outros. Segundo, o cuidado de si mesmo pode compensar a insuficiência na educação, atribuída à ignorância de seu pedagogo, bem como sua educação erótica, fruto do tipo de interesse dos seus amantes, os quais, apenas desfrutaram de sua beleza e não o incentivaram a cuidar de si mesmo. Em terceiro, ele está na idade correta, por não estar mais na mão dos pedagogos e, ademais, na medida em que atingiu determinada idade, seus amantes desinteressaram-se por ele. Aqui, o cuidado de si é “uma necessidade de jovens numa relação entre eles e seu mestre, ou entre eles e seus amantes, ou entre eles e seu mestre e amante” (FOUCAULT, 2004, p. 49). Em quarto, por fim, há a ignorância do objeto. Alcibíades não sabe o objetivo e o fim da concórdia dos cidadãos como atividade política. Por não saber o que é o bom governo, precisa cuidar de si mesmo.



Vemos, então, surgir, a partir do cuidado de si duas questões. A primeira diz respeito ao sujeito: o que é o si mesmo? E a segunda: qual é a tékhne para um bom governo? “Qual o eu de que devo ocupar-me a fim de poder, como convém, ocupar-me com os outros a quem devo governar?” (FOUCAULT, 2004, p. 51). Resumindo as duas perguntas: o que é o si mesmo, e o que é o cuidado necessário para governar os outros?
Para responder a essas questões, seguiremos as analogias de Sócrates, nas quais diferenciamos os sujeitos e aquilo do qual se servem. Podemos distinguir, na arte da sapataria, os instrumentos, como o cutelo, e o sapateiro. O mesmo verifica-se na música, na qual distinguimos a cítara de seu músico. Mas, e quando agitamos a mãos? Temos aí as mãos e aquele que se serve delas, o sujeito. O corpo não pode servir-se do corpo, o elemento o qual se serve das mãos, dos olhos, da linguagem e de todo o corpo só pode ser a alma. Servir-se este que, em grego khrêsthai/khrêsis, indica um comportamento, uma atitude, relações com os outros e consigo mesmo, mas que não é instrumental, nem substancial, mas sim transcendente e subjetiva.
Ao concebermos a alma enquanto sujeito, o cuidado de si passa a distinguir-se em três outros tipos de atividades. Sócrates enuncia o exemplo do médico: quando o médico adoece e aplica sobre si sua arte médica, podemos dizer que ele se ocupa consigo mesmo? A resposta é não, pois ele está se ocupando com o corpo, e não com o si mesmo da alma. A segunda atividade é a economia: quando um proprietário ocupa-se com suas posses, seus bens e sua família, ele está se ocupando consigo mesmo? Não, ele está se ocupando com o que é dele, e não consigo mesmo. Os pretendentes de Alcibíades ocupavam-se com o próprio Alcibíades? Da mesma forma que nos exemplos anteriores, a resposta é negativa, haja vista que eles estavam ocupados com a beleza de seu corpo. Na verdade, quem cuida de Alcibíades é Sócrates, pois apenas ele cuida de sua alma. Sócrates é muito mais que um professor sofista, é mais que um pedagogo, é o mestre da epiméleia heuatoû, pois:

Diferente do professor, ele não cuida de ensinar aptidões e capacidades a quem ele guia, não procura ensiná-lo a falar nem a prevalecer sobre os outros, etc. O mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem pelo seu discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio (FOUCAULT, 2004, p. 73).

Sendo assim: o que é o ‘eu’ com o qual é preciso ocupar-se? A alma. O que é ocupar-se consigo mesmo, o que é o cuidado de si? É conhecer a si mesmo, gnôthi seautón. Foucault nos diz que o aparecimento dessa referência ao “conheça a si mesmo”, no Primeiro Alcibíades, é totalmente diferente de outras duas anteriores. Enquanto a primeira surge como prudência, para que Alcibíades relacione suas ambições com suas capacidades, isto é, para que ele perceba suas limitações e a importância em ocupar-se consigo mesmo; a segunda ressurge para responder quem é o si mesmo com que se deve ocupar. E, finalmente, agora o gnôthi seautón emerge de maneira direta e decisiva, para dizer que o cuidado de si é o conhecimento de si mesmo. E este momento afetará toda a cultura greco-romana. A partir daí, surge a justificativa para que o cuidado de si, ou seja, para que todas as práticas espirituais, sejam organizadas em torno do “conheça a ti mesmo”. Apesar disso, em Platão, o conhecimento de si é apenas um aspecto extremamente importante do cuidado de si, relação esta que será revertida alguns séculos depois pelo neoplatonismo. (FOUCAULT, 2004, p. 216).
E como devemos nos conhecer? Para chegar a esta resposta, Sócrates parte do exemplo do olho e do espelho. Quando nos vemos no olho de alguém, semelhante a nós, vemos-nos a nós mesmos. Mas este si mesmo que se vê não é graças ao olho, mas à visão, a qual é também no olho do outro. Para a alma ver-se, é preciso que se volte para um elemento de sua própria natureza. E qual é a natureza da alma? O pensamento e o saber. Sendo divinos o pensamento e o saber, a alma deve voltar-se para o divino, com o fim de conhecer-se a si mesma e receber a sabedoria, sophrosýne. De maneira que, a alma conhecerá a diferença entre o bem e o mal, entre o verdadeiro e o falso, e saberá, enfim, governar a cidade.
No final do diálogo, Alcibíades compromete-se a ocupar-se com a justiça, pois ocupar-se consigo mesmo ou com a justiça, são equivalentes, já que tudo surgiu a partir da preocupação em se tornar um bom governante. Infelizmente isto não se deu, e é o mesmo Alcibíades que, já mais velho, no O Banquete, lamenta ao dizer que acabou envolvendo-se com os assuntos políticos de Atenas em vez de cuidar de si mesmo (FOUCAULT, 2004, p. 215).
A questão do cuidado de si implica uma atitude ou um conjunto de atitudes, mediante as quais o sujeito transforma-se a si mesmo e que estão relacionadas a uma conversão do olhar, ou seja, uma mudança no foco da atenção, que se desloca daqueles valores considerados importantes pela maioria (ói polloí) em direção àqueles que são cuidados por poucos (ói prôtoi), tais como a alma, o pensamento e a verdade. quando impera o privilégio do conhece-te a ti mesmo não são mais as ações de transformação do sujeito e as atitudes que têm primazia, mas o conhecimento como ingresso na verdade. É justamente neste momento do cuidado de si em sua relação com o “conheça a si mesmo”, ou seja, o momento socrático, no qual Foucault localiza a passagem da espiritualidade à filosofia. Enquanto a espiritualidade consistia em atividades constituintes do sujeito, a filosofia passou a se ocupar com o acesso à verdade.

REFERENCIAS:

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins F ontes. 2004.

PLATÃO.  Alcibíades I e II. Lisboa: Editorial Inquérito. S.d.


EXERCÍCIOS:
Investigue as práticas do zen-budismo e escreva um relato dessa experiência indicando elementos do cuidado de si.


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Você tem que ser obrigatoriamente mentiroso para ser presidente?¹

 Michel Onfray
Pois bem, isso ajuda. Mal imaginamos como um homem decidido a sacrificar sua vida para à verdade poderia fazer uma carreira política, seja com o menor ou nos altos escalões. Bem, em termos de política, não existem mais que duas questões: como chegar ao poder? E uma vez alcançado, como mantê-lo? As duas perguntas têm a mesma resposta: todos os meios são bons. Chamamos maquiavelismo a essa arte de afastar completamente a moral para reduzir a política a puros problemas de força. Em outras palavras, principalmente o ditado popular: o fim justifica os meios: tudo é bom, desde que seja para o que se pretende. A partir desta perspectiva, a mentira proporciona uma arma formidável e eficaz.



O acesso ao poder envolve demagogia, ou seja, a mentira para o povo. Os candidatos para as funções oficiais sempre acabam renunciando desde sempre à verdade para limitar-se a sustentar um discurso adulador destinado aos eleitores: o povo, excepcional, genial, ancestral, inventiva, criador, etc. Em vez de atender o interesse público que a função demanda, o mandato político ansioso de mandato busca o consentimento da maioria - cinquenta e um por cento, o que é suficiente. Para obtê-lo, inunda, seduz, persuade e promete, tem um propósito útil para recolher os votos, mas não há intenção de honrar suas promessas- das quais afirmará, mais tarde, que só envolve aqueles que acreditaram.


O motor dos mentirosos

A mentira destinada a aumentar as  intenções de voto, a criar uma dinâmica eletiva, a  falsear as pesquisas, se duplica com uma mentira sobre o adversário, a fim de desacreditá-lo. Nunca se reconhece o talento, a inteligência ou mérito, tudo o que propõe é o mal, está  mal feito, perdido de antemão. Esta categoria de homens ou mulheres jamais sai da lógica governamental ou opositora: a verdade é relativa ao campo em que um se encontra, a verdade é tudo o que ele pensa e faz o candidato defendido, errado tudo o que procede do seu adversário. Não há um absoluto para a verdade que permita pensar em termos de interesse geral, de destino do país, de saúde de um Estado, do papel da nação no planeta, e que permita reconhecer ao opsitor, por pouco que seja, algo de virtuoso, sobretudo quando suas propostas vão neste sentido; nada de verdade absoluta, portanto, mas uma subjetividade, verdades de circunstância.

Mentira dirigida ao povo, ao adversário, mas também mentir sobre si mesmo: se ocultas as próprias zonas sombrias, se apagam as pegadas irritantes do trajeto, os fracassos, as blasfêmias, as tomadas de posição unilateral, em função da verdade do momento (à respeito da energia nuclear, civil ou militar, a redução do mandato presidencial para cinco anos[1], a realização de uma Europa de moeda única, a supressão do serviço militar em benefício de um exército profissional, as opiniões dos responsáveis políticos ao mais alto nível mudam segundo as épocas e períodos eleitorais...). E se pretende apresentar um projeto para o destino da França[2], quando este foi cuidadosamente projetado por gabinetes de conselheiros em comunicação, com o fim de que corresponda ao perfil do melhor produto vendável.

Quando essas mentiras tenham seduzido suficientemente os eleitores para que o poder não seja um objetivo, mas uma realidade, se trata, do segundo período importante da ação política nas democracias modernas, de permanecer em seu lugar. Como manter-se? Como chegar até o fim? Não ir embora? Volte o mais rápido possível? As mesmas respostas que no caso anterior: todos os meios são bons e, entre eles, a mentira. Pois nenhum político diz amar o poder pelo prazer que seu exercício proporciona, ninguém diz gostar desse forte álcool pela embriaguez que proporciona, mas todos falam de sua obrigação de permanecer para o bem da França e os franceses[3], para terminar o que não tiveram tempo para fazer, por causa do destino, da fatalidade, dos outros, da situação, nunca de si mesmo.

Sempre triunfa a vontade particular em detrimento do interesse geral. As células de informação e de comunicação das instâncias de poder – o Estado ou o Governo – fisgam os jornalistas com informações criadas para seduzir. Mentira, todavia ali, associada a propaganda, a publicidade, chamada até recentemente reinvindicação.  O verbo serve para prejudicar, as palavras de um homem da oposição saem de sua boca como se a realidade do poder não existisse, e valem para aumentar as promessas eleitorais, para dar lições, criticar, anunciar que se fará melhor, etc. As declarações de um eleito no exercício do poder dão sempre a impressão de que se tem ficado na oposição. Porque a função política obriga a uma mentira particular, caracterizada por uma prática sofística.

Celebração da embalagem, desprezo pelo conteúdo

Os sofistas eram grandes inimigos de Platão (428-347 a.C.) Para eles, o essencial reside na forma, nunca no fundo, pouco importa o que se diz, o conteúdo, a mensagem, o valor da informação ou o que as palavras anunciam para o futuro, pois só conta a forma, a maneira, a técnica de exposição. Antepassados dos publicitários, preocupados unicamente por vender um produto e atrair a atenção sobre o envoltório, mas que sobre o conteúdo, esses filósofos cobravam um alto preço por ensinar a falar, expor, seduzir a multidão e assembleias sem nenhuma consideração pelas ideias transmitidas. O conjunto dos combates de Sócrates e Platão, seu porta-voz persegue essa índole, essa profissão singular.

Para um sofista, a verdade reside na eficácia. É verdadeiro o que alcança seus fins e produz seus efeitos. É falso tudo o que desperdiça sua meta. Fora do moral e das considerações do vício ou da virtude, o que importa, para os alunos dos sofistas, é, nas condições da democracia grega a palavra na praça pública, seduzir seu auditório, satisfazer e, especialmente, obter seu voto para ser eleito e ocupar um assento nas instancias decisórias. Enquanto Sócrates ensinava verdades imutáveis, os sofistas – Protáforas (século V a.C), Gorgias (487-380 a.C), Hipias (segunda metade do século V a.C.), Critias, Pródico (século V a.C) e alguns outros – se vangloriam dos méritos da palavra sedutora e do verbo arrebatador.

A arte da política é uma arte da sofística, por tanto, da mentira. Para dissimular esta evidência, alguns teóricos do direito inclusive tem forjado o conceito de razão de Estado, que permite justificar todo, sustentar o silêncio, intervir como mais alta instância no curso normal da justiça, classificar assuntos secretos de defesa ou de Estado, negociar com terroristas aos que se pagam tributos ou com Estados sanguinários, passar contratos discretamente para vender armas aos governantes oficialmente inimigos, porque trangridem o princípio dos direitos humanos, mas informalmente amigos, quando pagam em moeda forte.

Abertamente, a razão de Estado existe para evitar que as negociações importantes fracassem, para impedir uma transparência de que se serviriam os inimigos do interior (a oposição) ou do exterior. Em realidade, prova que o Estado existe raramente para servir aos indivíduos, contrariamente ao que se diz dele para justifica-lo, mas, ao contrário, os indivíduos no existem mas que para servi-lo e que, no caso de negar-se a obedecer, dito Estado dispõe, todo poderoso, de meios de coação: a polícia, os tribunais, o exército, o direito, a lei. Saiba, não esqueça, e vote se desejar...




[1] Dificilmente adaptável, referido a presidência da República francesa (de sete anos)
[2] Do país.
[3] Do país e seus compatriotas ou cidadãos.

¹ Tradução nossa

 REFERENCIAS:

ONFRAY, Michel. Antimanual de filosofia: lecciones socráticas y alternativas. 4.ed. Madrid: EDAF, 2007.

Atividades:
Leia o texto, discuta os integrantes do seu grupo e publique um comentário refletindo sobre o momento político atual. Justifique com exemplos. Identifique-se corretamente.

Prazo: até 02/11/14


Questões de múltipla escolha sobre Maquiavel:

Clique no link abaixo, digite seu nome e sobrenome, e clique em "START" para iniciar. Lembre que as questões de 5 a 8 tem mais de uma alternativas correta.

domingo, 7 de setembro de 2014

Tenho medo, logo existo¹

Michel Onfray

De que lógica procede o irracional? Do medo ao vazio intelectual, da angústia ante a evidência dificilmente aceitável, da incapacidade  dos homens para assumir sua ignorância e limitação dos seus faculdades, entre elas a razão. De onde podem  dizer "não sei" ou "ignoro por que", "não compreendo”, inventam  histórias e acreditam nelas. Para não ter que transgredir com um certo número de evidências, com as quais, sem  dúvida,  temos que contar (a vida é curta, logo vamos  morrer -  mesmo que seja até os cem anos, é curta em comparação com a eternidade do nada de onde viemos e para o qual vamos...-; temos  pouco ou nenhum poder sobre o desenvolvimento deste breve existência; depois da morte não há nada mais a decomposição, e não uma vida de outra forma, etc), os homens inventam ficções e lhes pedem auxílio.

O irracional preenche as brechas que a razão abre ao destruir ilusões. Incapazes de viver unicamente segundo o real racional, os humanos constroem um mundo completamente irracional mais fácil de habitar ao estar cheio de crenças que procuram uma aparente paz consigo mesmo. O raio cai sobre uma árvore? Um homem da  antiguidade greco-romana no sabia por que, e inventa um deus malvado, vingador, ciente de corrupção humano, que utiliza o feixe para corrigir a seus semelhantes. Zeus e seus relâmpagos, eis aqui a razão da tormenta grega ou romana. Mais tarde, o mesmo raio percebido por um homem do século XX, um pouco à corrente da física moderna, se converte na resultante de uma troca de polaridade entre nuvens carregadas de eletricidade e o sol. O rastro do movimento da energia em um arco elétrico, eis aqui a razão do raio. Razão antiga e mitologia contra a razão moderna e científica: o irracional de ontem se converte no racional de amanhã e para de inquietar, de dar medo.



O irracional é o que ainda não é racional, quer seja para um individuo, quer  seja para uma época ou uma cultura, e não o que não o será nunca. O que hoje está além da compreensão leva os homens a lançar hipóteses extraídas das fontes do irracional, onde não existem limites: se pode recorrer a imaginação mais fértil, às ideias más estranhas, desde que se tenha a eficaz ilusão de fazer retroceder a ignorância. A partir do momento em que o  problema já não se coloca, após a descoberta da solução por meio da razão, a crença é  abandonada e vai para  o museu de equívocos, que até recentemente se acreditava verdadeiro.

No entanto, sobre certas questões impossíveis de resolver com o
progresso da ciência, da investigação, da técnica, o irracional  reina como senhor durante longo tempo. Assim, diante de questões metafísicas (etimologicamente, aquelas que surgem além da física): de onde viemos?, quem somos?, onde estamos indo?, utilizando expressões cotidianas, em outras palavras: por que tempos que morrer?, o que há após a morte?, por que temos tão pouco poder sobre a nossa existência?, como será o futuro?, que sentido dar à existência?, com efeito ser mortal, não sobreviver, sofrem determinações, não escapar à necessidade, ser confinado a este planeta, são algumas dos motivos que fazem funcionar o motor irracional à toda velocidade.

Todas as práticas irracionais pretendem dar resposta a estes problemas angustiantes: a existência de espíritos imortais que se movem num mundo onde poderiam ser interrogados com a ajuda de uma mesa giratória nos acalma: a morte diz respeito apenas ao corpo, não a alma, quem conhece a imortalidade; a capacidade de ler e prever o futuro com signos, linhas da mão, borra de café, uma bola de cristal, cartas, fotos, nos acalma: o futuro já está escrito em algum lugar, alguns (médiuns) que podem acessar esse lugar  e revelar o seu conteúdo, eu não devo temer o bom ou mau uso da minha liberdade, de minha razão, de minha vontade, que deve vir virá; a existência de objetos voadores não identificados, portanto, planetas habitáveis​​, uma vida fora do sistema solar, de forças misteriosas que vêm das profundezas das galáxias, regozijamo-nos: podemos crer que a nossa sobrevivência em outra parte está assegurada por poderes que governam o cosmos e, portanto, a nossa pequena existência, etc


O irracional é um alívio, sem dúvida, mas uma ajuda pontual, por que não cumpre suas promessas. Em vez disso, a razão pode ser igualmente útil, mas com mais segurança: principalmente quando se concentra na destruição de ilusões e crenças, ficções criadas pelos homens para o conforto com ultramundos, os mais além inventados, que sempre dispensam um bem viver vida aqui e agora. A filosofia e o uso crítico da razão permitem obter outras soluções, neste caso, certezas viáveis ​​e consolações muito mais seguro: para a mesma evidência (a morte, a limitação dos poderes humanos, a pequenez do homem diante da imensidão de mundo, a angústia frente ao destino), a filosofia fornece meios para controlar o nosso destino, para nos converter em atores de nossa existência, para nos libertar dos medos inúteis e paralisantes -  e não nos abandona, atados de  pés  e mãos, como as crianças, a mitos de ontem ou hoje. Pare de olhar para as estrelas, o seu futuro não está escrito  em nenhum lugar: está por ser escrito – e só você pode ser o autor.

¹ Tradução nossa
REFERENCIAS:


ONFRAY, Michel. Antimanual de filosofia: lecciones socráticas y alternativas. 4.ed. Madrid: EDAF, 2007.



Exercícios: 

Comente e lembre de se identificar corretamente.

    
      1. Leia o texto de Michel de Onfray e responda, de quais filósofos citados, o pensamento dele mais se aproxima?
    

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A musa da Filosofia

Arlindo Picoli
O homem livre não pensa em nada a não ser na morte; e a sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida (ESPINOSA).

Somos programados instintivamente para evita-la a qualquer custo, e por isso mesmo, é muito perigoso tentar salvar uma pessoa que está se afogando. Entretanto, uma depressão muito forte pode levar algumas pessoas a procura-la antes do tempo. Apesar de natural, ela está na categoria dos temas que muitos não se sentem a vontade em falar. Mas o mesmo não ocorre na história da Filosofia, onde desde sempre inspirou o pensamento dos maiores pensadores da humanidade, estamos falando da morte:

A mesma coisa em nós, estarmos vivos ou mortos acordados ou adormecidos, sermos jovens ou velhos. Porque estes se mudam naqueles e aqueles novamente se transformam nestes”. (Heráclito, Frag. B, LXII)

Como sê lê, Heráclito lidava com a morte de uma maneira muito natural, não oposta à vida, como se fosse a mesma coisa, num fluxo contínuo, como a vigília e o sono, ou a juventude e a velhice. Assim como acordar e dormir, viver e morrer são fenômenos complementares. Isso se justifica porque a vida é uma sequência infindável de mortes; afinal todos os dias morremos um pouco.:  “do arco o nome é vida e a obra é morte”, todas as coisas estão em oposição umas com as outras, o que explica o caráter mutável de tudo.

Além disso, graças à biologia, hoje sabemos que as células de nosso corpo morrem e são substituídas por outras, e é isso que garante a nossa sobrevivência saudável, apesar de parecer contraditório, a morte é parte indispensável do processo que chamamos vida, ou seja quando vemos um organismo vivo nunca percebemos, mas é a morte que mantém ele vivo, como dizia Heráclito: “morte é tudo que vemos despertos, e tudo que vemos dormindo é sono”
Apesar de ser uma das poucas certezas inquestionáveis, para nós humanos, a morte é revestida de mistério.

A dificuldade de aceita-la produz a necessidade de lidar de alguma forma com ela. Para superar essa dificuldade as diferentes religiões criaram ritos e mitos, moldando a crença de cada povo, na esperança de conviver melhor com a dor que ela representa. De forma diferente, sem recorrer às certezas ou aos dogmas,  a Filosofia buscará argumentos racionais para superar o medo final com que nossa existência nos desafia. Sabemos que vamos morrer, portanto nada melhor do que entende-la como parte da nossa realidade do que mitifica-la ou  trata-la como se fosse um tabu.
Apesar de difícil, a  morte é um tema fundamental para a filosofia a ponto de Schopenhauer (1788-1860), nos lembrar:

 A morte é a musa da filosofia, e por isso Sócrates a definiu como “preparação para a morte”. Sem a morte, seria mesmo difícil que se tivesse filosofado (Schopenhauer). 

Isso porque a inquietude produzida pela experiência da morte de alguém próximo nos “tira o tapete” e nos obriga a pensar no sentido que damos às nossas próprias vidas, no que estamos fazendo com nós mesmos e com os outros.

Mas sobre a morte os Filósofos nunca estiveram de acordo, portanto, por meio de alguns fragmentos, vamos pensar sobre o que alguns deles têm a nos dizer sobre ela.
No diálogo Fédon, que trata do período que antecede a morte de Sócrates, Platão apresenta sua teoria sobre a imortalidade da alma. E convida a todos a lidar com a morte de forma tranquila e serena. Para isso usa a experiência de morte que teve com seu mestre Sócrates, acusado de corromper a juventude, foi julgado e condenado pela assembleia ateniense à morte pela ingestão de um veneno, a cicuta. Ao invés de se desesperar, ou de fugir, aceitou sua sentença e aproveitou seus últimos momentos para se cercar de seus amigos e deixou um exemplo para a humanidade. Para Sócrates o verdadeiro Filósofo não teme a morte:
Ao vires um homem revoltar-se no instante de morrer, não será isso prova suficiente de que não se trata de um amante da sabedoria, mas amante do corpo? Um indivíduo nessas condições também será, possivelmente, amante do dinheiro ou da fama, se não o for de ambos ao mesmo tempo (PLATÃO, Fédon, XIII)



A ideia fundamental difundida por Sócrates e Platão é que o corpo representa uma prisão para a alma, portanto a morte representaria a libertação desta, rumo ao mundo das ideias perfeitas. Portanto nada de ruim haveria na morte.

[...] se ela [a alma] é pura no momento de sua libertação e não arrastar consigo nada corpóreo, por isso mesmo que durante a vida nunca mantivera comércio voluntário com o corpo, porém sempre evitara, recolhida em si mesma e tendo sempre isso como preocupação exclusiva, que outra coisa não é senão filosofar, no rigoroso sentido da expressão, e preparar-se para morrer facilmente... Pois tudo isso não será um exercício para a morte? (PLATÃO, Fédon)

Epicuro, filósofo hedonista, pensava diferente, pois  não haveria motivo para tratar o corpo de forma tão radical e afastado da alma. Defendia a busca da Felicidade (edaimonia), mas para isso era necessário a prática da ataraxia - isto é, calma e apatia em relação aos desejos do corpo. Os prazeres então poderiam ser buscados, mas sempre de forma moderada pela razão. Para ele a morte não era nada e não devíamos ficar desesperados esperando por ela:

Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exato do fato de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe atribuamos uma ideia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no fato de não viver. É, pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la. Tolice afligir-se com a espera da morte, pois se trata de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois, enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais (EPICURO).

Como pensador materialista,  Epicuro  adotou a teoria do átomo de Demócrito, assim a morte seria a simples dissociação dessas partículas para se reunirem mais tarde dando origem a outros seres .

Outro pensador que via a morte de forma natural, mas alertava  que o medo dela poderia comprometer nossa felicidade era Lucrécio:

É preciso, antes de tudo, expulsar esse medo do Aqueronte [o rio que separa o mundo dos mortos e dos vivos] que, penetrando até o fundo de nosso ser, envenena a vida humana, colore todas as coisas do negror da morte e não deixa subsistir nenhum prazer límpido e puro (Lucrécio).

Eu seu ensaio “Que filosofar é aprender a morrer” Michel de Montaigne, dizia que a morte não nos diz respeito e nos tranquiliza quanto ao tempo que se deixa de viver devido à morte.

Ademais, ninguém morre antes de sua hora. O tempo que abandonais não era mais vosso que o tempo que se passou antes de vosso nascimento: e tampouco vos toca (Montaigne).

Na presença iminente da morte, em geral pensamos em sermos bons, em dizer o  quanto gostamos das pessoas, agradecer pelo fizeram por nós, em perdoar, em revelarmos segredos, etc. É como se ela nos convidasse a sermos bons, verdadeiros, corretos, éticos. E mais, em sua presença, é urgente sermos bons, imediatamente,  já. Em seu Tractatus Lógico-Philosophicus,  Wittgenstein (1889-1951), nos convida a superar o medo de nossa finitude e incerteza do além com a intensidade do presente:

A morte não é um acontecimento da vida. Não há uma vivência da morte. Se se compreende a eternidade não como a duração temporal infinita, mas como atemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente, A nossa vida é infinita, tal como nosso campo visual é sem limites (WITTGENSTEIN).

Filósofo existencialista, para Heidegger a presença constante da morte é o que nos caracteriza enquanto homens, ou seja, ela é o nosso “princípio de individuação”.  Mal nascemos e já temos ela como possibilidade. Enquanto não morremos, sempre ainda podemos ser algo que ainda não fomos. Portanto, a morte é o que nos faz completos.

A questão da constituição ontológica de ‘fim’ e ‘totalidade’, obriga a tarefa de uma análise positiva dos fenômenos da existência até aqui postergados. No centro destas considerações, acha-se a caracterização ontológica do ser-para-o-fim em sentido próprio da presença e a conquista de um conceito existencial da morte. (HEIDEGGER).

Para Sartre, também existencialista, não devemos temer o sofrimento ou a morte, mas sim o sofrimento ou o nosso fim sem motivos, em vão. Ele retoma o nada em que a morte converte todas nossas possiblidades.

A morte é a nadificação  dos nossos projetos, é a certeza de que um nada total nos espera (Sartre).

Para ele a morte nos faz humanos. O medo, a fuga ou o apelo ao sobrenatural nos arrasta ao inumano, e mesmo aí o ser humano é livre para escolher e assumir a responsabilidade pela sua escolha.



Longe de esgotar o assunto, o que pretendemos aqui foi provocar o pensamento sobre o tema da morte e incentivar a investigação filosófica. Cabe à cada um tomar para si essa tarefa, lembrando sempre que filosofar é  duvidar e que as certezas paralisam o pensamento,  nos impedindo de sermos vivos, de sermos simplesmente seres humanos.

EQM: Experiência de Quase Morte

Em 1975 o Doutor Raymond Moody  publicou um livro em descrevia os relatos de pessoas que passaram por experiência de quase morte (EQM), pessoas que sofrem uma parada cardíaca e são reanimadas, ou mesmo certas cirurgias, podem acordar com a lembrança de estados alterados de consciência e alguns elementos em comum foram observados nos relatos.

Apesar da diversidade, cinco características constantemente são descritas pelos pacientes: sentimento de paz, experiência fora do corpo, entrar na escuridão, visão da luz e entrar na luz. O psicólogo Kenneth Ring acrescenta que muitas vezes são descritos: o encontro com parentes falecidos, a visão de belas cores ou ouvir música, encontrar um ser ou uma presença e também uma "revisão da vida".

Apesar do fascínio que a EQM provoca, ela não é a prova definitiva da existência da alma e muito menos da vida depois da morte, já que se uma pessoa narra a experiência, é justamente porque não veio à óbito. Médicos e pesquisadores atribuem esse fenômeno às alterações químicas que afetam o cérebro nesse estado. Sabemos, por exemplo, que a falta de oxigênio pode afetar a percepção a ponto de produzir alucinações em diversos casos clínicos.

Apelar para a EQM para provar a vida após a morte é quase tão irracional quanto tratar um mito como um fato real, só revela o medo que caracteriza o ser humano que ainda não desenvolveu o suficiente sua capacidade crítica e racional. A morte é um fato como a própria existência. Se ninguém tem pavor em existir, então por nos causa tanto medo? As fantasias e falácias criadas em torno dela paralisam nosso pensamento e comprometem nossa liberdade. Como dizia Sêneca “não é da morte que temos medo, mas de pensar nela", quem teme sua natureza é porque ainda não aprendeu a pensar de maneira filosófica,



O Último Dia
Meu amor
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Ia manter sua agenda
De almoço, hora, apatia
Ou esperar os seus amigos
Na sua sala vazia
Meu amor
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Corria prum shopping center
Ou para uma academia
Pra se esquecer que não dá tempo
Pro tempo que já se perdia
Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia
Se o mundo fosse acabar
Me diz, o que você faria
Andava pelado na chuva
Corria no meio da rua
Entrava de roupa no mar
Trepava sem camisinha
Meu amor
O que você faria?
O que você faria?
Abria a porta do hospício
Trancava a da delegacia
Dinamitava o meu carro
Parava o tráfego e ria
Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Me diz o que você faria
Me diz o que você faria...
REFERENCIAS:

Vídeo O Último Dia

EQM

Nova Escola

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vol. 2. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 5º Ed. Petrópolis RJ: Vozes, 1997.
MONTAIGNE. Os Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997


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