quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A musa da Filosofia

Arlindo Picoli
O homem livre não pensa em nada a não ser na morte; e a sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida (ESPINOSA).

Somos programados instintivamente para evita-la a qualquer custo, e por isso mesmo, é muito perigoso tentar salvar uma pessoa que está se afogando. Entretanto, uma depressão muito forte pode levar algumas pessoas a procura-la antes do tempo. Apesar de natural, ela está na categoria dos temas que muitos não se sentem a vontade em falar. Mas o mesmo não ocorre na história da Filosofia, onde desde sempre inspirou o pensamento dos maiores pensadores da humanidade, estamos falando da morte:

A mesma coisa em nós, estarmos vivos ou mortos acordados ou adormecidos, sermos jovens ou velhos. Porque estes se mudam naqueles e aqueles novamente se transformam nestes”. (Heráclito, Frag. B, LXII)

Como sê lê, Heráclito lidava com a morte de uma maneira muito natural, não oposta à vida, como se fosse a mesma coisa, num fluxo contínuo, como a vigília e o sono, ou a juventude e a velhice. Assim como acordar e dormir, viver e morrer são fenômenos complementares. Isso se justifica porque a vida é uma sequência infindável de mortes; afinal todos os dias morremos um pouco.:  “do arco o nome é vida e a obra é morte”, todas as coisas estão em oposição umas com as outras, o que explica o caráter mutável de tudo.

Além disso, graças à biologia, hoje sabemos que as células de nosso corpo morrem e são substituídas por outras, e é isso que garante a nossa sobrevivência saudável, apesar de parecer contraditório, a morte é parte indispensável do processo que chamamos vida, ou seja quando vemos um organismo vivo nunca percebemos, mas é a morte que mantém ele vivo, como dizia Heráclito: “morte é tudo que vemos despertos, e tudo que vemos dormindo é sono”
Apesar de ser uma das poucas certezas inquestionáveis, para nós humanos, a morte é revestida de mistério.

A dificuldade de aceita-la produz a necessidade de lidar de alguma forma com ela. Para superar essa dificuldade as diferentes religiões criaram ritos e mitos, moldando a crença de cada povo, na esperança de conviver melhor com a dor que ela representa. De forma diferente, sem recorrer às certezas ou aos dogmas,  a Filosofia buscará argumentos racionais para superar o medo final com que nossa existência nos desafia. Sabemos que vamos morrer, portanto nada melhor do que entende-la como parte da nossa realidade do que mitifica-la ou  trata-la como se fosse um tabu.
Apesar de difícil, a  morte é um tema fundamental para a filosofia a ponto de Schopenhauer (1788-1860), nos lembrar:

 A morte é a musa da filosofia, e por isso Sócrates a definiu como “preparação para a morte”. Sem a morte, seria mesmo difícil que se tivesse filosofado (Schopenhauer). 

Isso porque a inquietude produzida pela experiência da morte de alguém próximo nos “tira o tapete” e nos obriga a pensar no sentido que damos às nossas próprias vidas, no que estamos fazendo com nós mesmos e com os outros.

Mas sobre a morte os Filósofos nunca estiveram de acordo, portanto, por meio de alguns fragmentos, vamos pensar sobre o que alguns deles têm a nos dizer sobre ela.
No diálogo Fédon, que trata do período que antecede a morte de Sócrates, Platão apresenta sua teoria sobre a imortalidade da alma. E convida a todos a lidar com a morte de forma tranquila e serena. Para isso usa a experiência de morte que teve com seu mestre Sócrates, acusado de corromper a juventude, foi julgado e condenado pela assembleia ateniense à morte pela ingestão de um veneno, a cicuta. Ao invés de se desesperar, ou de fugir, aceitou sua sentença e aproveitou seus últimos momentos para se cercar de seus amigos e deixou um exemplo para a humanidade. Para Sócrates o verdadeiro Filósofo não teme a morte:
Ao vires um homem revoltar-se no instante de morrer, não será isso prova suficiente de que não se trata de um amante da sabedoria, mas amante do corpo? Um indivíduo nessas condições também será, possivelmente, amante do dinheiro ou da fama, se não o for de ambos ao mesmo tempo (PLATÃO, Fédon, XIII)



A ideia fundamental difundida por Sócrates e Platão é que o corpo representa uma prisão para a alma, portanto a morte representaria a libertação desta, rumo ao mundo das ideias perfeitas. Portanto nada de ruim haveria na morte.

[...] se ela [a alma] é pura no momento de sua libertação e não arrastar consigo nada corpóreo, por isso mesmo que durante a vida nunca mantivera comércio voluntário com o corpo, porém sempre evitara, recolhida em si mesma e tendo sempre isso como preocupação exclusiva, que outra coisa não é senão filosofar, no rigoroso sentido da expressão, e preparar-se para morrer facilmente... Pois tudo isso não será um exercício para a morte? (PLATÃO, Fédon)

Epicuro, filósofo hedonista, pensava diferente, pois  não haveria motivo para tratar o corpo de forma tão radical e afastado da alma. Defendia a busca da Felicidade (edaimonia), mas para isso era necessário a prática da ataraxia - isto é, calma e apatia em relação aos desejos do corpo. Os prazeres então poderiam ser buscados, mas sempre de forma moderada pela razão. Para ele a morte não era nada e não devíamos ficar desesperados esperando por ela:

Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exato do fato de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe atribuamos uma ideia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no fato de não viver. É, pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la. Tolice afligir-se com a espera da morte, pois se trata de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois, enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais (EPICURO).

Como pensador materialista,  Epicuro  adotou a teoria do átomo de Demócrito, assim a morte seria a simples dissociação dessas partículas para se reunirem mais tarde dando origem a outros seres .

Outro pensador que via a morte de forma natural, mas alertava  que o medo dela poderia comprometer nossa felicidade era Lucrécio:

É preciso, antes de tudo, expulsar esse medo do Aqueronte [o rio que separa o mundo dos mortos e dos vivos] que, penetrando até o fundo de nosso ser, envenena a vida humana, colore todas as coisas do negror da morte e não deixa subsistir nenhum prazer límpido e puro (Lucrécio).

Eu seu ensaio “Que filosofar é aprender a morrer” Michel de Montaigne, dizia que a morte não nos diz respeito e nos tranquiliza quanto ao tempo que se deixa de viver devido à morte.

Ademais, ninguém morre antes de sua hora. O tempo que abandonais não era mais vosso que o tempo que se passou antes de vosso nascimento: e tampouco vos toca (Montaigne).

Na presença iminente da morte, em geral pensamos em sermos bons, em dizer o  quanto gostamos das pessoas, agradecer pelo fizeram por nós, em perdoar, em revelarmos segredos, etc. É como se ela nos convidasse a sermos bons, verdadeiros, corretos, éticos. E mais, em sua presença, é urgente sermos bons, imediatamente,  já. Em seu Tractatus Lógico-Philosophicus,  Wittgenstein (1889-1951), nos convida a superar o medo de nossa finitude e incerteza do além com a intensidade do presente:

A morte não é um acontecimento da vida. Não há uma vivência da morte. Se se compreende a eternidade não como a duração temporal infinita, mas como atemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente, A nossa vida é infinita, tal como nosso campo visual é sem limites (WITTGENSTEIN).

Filósofo existencialista, para Heidegger a presença constante da morte é o que nos caracteriza enquanto homens, ou seja, ela é o nosso “princípio de individuação”.  Mal nascemos e já temos ela como possibilidade. Enquanto não morremos, sempre ainda podemos ser algo que ainda não fomos. Portanto, a morte é o que nos faz completos.

A questão da constituição ontológica de ‘fim’ e ‘totalidade’, obriga a tarefa de uma análise positiva dos fenômenos da existência até aqui postergados. No centro destas considerações, acha-se a caracterização ontológica do ser-para-o-fim em sentido próprio da presença e a conquista de um conceito existencial da morte. (HEIDEGGER).

Para Sartre, também existencialista, não devemos temer o sofrimento ou a morte, mas sim o sofrimento ou o nosso fim sem motivos, em vão. Ele retoma o nada em que a morte converte todas nossas possiblidades.

A morte é a nadificação  dos nossos projetos, é a certeza de que um nada total nos espera (Sartre).

Para ele a morte nos faz humanos. O medo, a fuga ou o apelo ao sobrenatural nos arrasta ao inumano, e mesmo aí o ser humano é livre para escolher e assumir a responsabilidade pela sua escolha.



Longe de esgotar o assunto, o que pretendemos aqui foi provocar o pensamento sobre o tema da morte e incentivar a investigação filosófica. Cabe à cada um tomar para si essa tarefa, lembrando sempre que filosofar é  duvidar e que as certezas paralisam o pensamento,  nos impedindo de sermos vivos, de sermos simplesmente seres humanos.

EQM: Experiência de Quase Morte

Em 1975 o Doutor Raymond Moody  publicou um livro em descrevia os relatos de pessoas que passaram por experiência de quase morte (EQM), pessoas que sofrem uma parada cardíaca e são reanimadas, ou mesmo certas cirurgias, podem acordar com a lembrança de estados alterados de consciência e alguns elementos em comum foram observados nos relatos.

Apesar da diversidade, cinco características constantemente são descritas pelos pacientes: sentimento de paz, experiência fora do corpo, entrar na escuridão, visão da luz e entrar na luz. O psicólogo Kenneth Ring acrescenta que muitas vezes são descritos: o encontro com parentes falecidos, a visão de belas cores ou ouvir música, encontrar um ser ou uma presença e também uma "revisão da vida".

Apesar do fascínio que a EQM provoca, ela não é a prova definitiva da existência da alma e muito menos da vida depois da morte, já que se uma pessoa narra a experiência, é justamente porque não veio à óbito. Médicos e pesquisadores atribuem esse fenômeno às alterações químicas que afetam o cérebro nesse estado. Sabemos, por exemplo, que a falta de oxigênio pode afetar a percepção a ponto de produzir alucinações em diversos casos clínicos.

Apelar para a EQM para provar a vida após a morte é quase tão irracional quanto tratar um mito como um fato real, só revela o medo que caracteriza o ser humano que ainda não desenvolveu o suficiente sua capacidade crítica e racional. A morte é um fato como a própria existência. Se ninguém tem pavor em existir, então por nos causa tanto medo? As fantasias e falácias criadas em torno dela paralisam nosso pensamento e comprometem nossa liberdade. Como dizia Sêneca “não é da morte que temos medo, mas de pensar nela", quem teme sua natureza é porque ainda não aprendeu a pensar de maneira filosófica,



O Último Dia
Meu amor
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Ia manter sua agenda
De almoço, hora, apatia
Ou esperar os seus amigos
Na sua sala vazia
Meu amor
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Corria prum shopping center
Ou para uma academia
Pra se esquecer que não dá tempo
Pro tempo que já se perdia
Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia
Se o mundo fosse acabar
Me diz, o que você faria
Andava pelado na chuva
Corria no meio da rua
Entrava de roupa no mar
Trepava sem camisinha
Meu amor
O que você faria?
O que você faria?
Abria a porta do hospício
Trancava a da delegacia
Dinamitava o meu carro
Parava o tráfego e ria
Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Me diz o que você faria
Me diz o que você faria...
REFERENCIAS:

Vídeo O Último Dia

EQM

Nova Escola

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vol. 2. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 5º Ed. Petrópolis RJ: Vozes, 1997.
MONTAIGNE. Os Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997


Atividades avaliativas:

Comente e lembre de se identificar corretamente.

      1.  Discuta o significado da frase de Montaigne "Quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver", e comente aqui as conclusões do grupo.
   
      2.   Após ler e refletir sobre a letra da música de Paulinho Mosca, responda: O que você faria hoje se soubesse que iria morrer amanhã?

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