Arlindo Picoli
O homem livre
não pensa em nada a não ser na morte; e a sua sabedoria é uma meditação não
sobre a morte, mas sobre a vida (ESPINOSA).
Somos programados instintivamente para evita-la a
qualquer custo, e por isso mesmo, é muito perigoso tentar salvar uma pessoa que
está se afogando. Entretanto, uma depressão muito forte pode levar algumas
pessoas a procura-la antes do tempo. Apesar de natural, ela está na categoria
dos temas que muitos não se sentem a vontade em falar. Mas o mesmo não ocorre
na história da Filosofia, onde desde sempre inspirou o pensamento dos maiores
pensadores da humanidade, estamos falando da morte:
A mesma
coisa em nós, estarmos vivos ou mortos acordados ou adormecidos, sermos jovens
ou velhos. Porque estes se mudam naqueles e aqueles novamente se transformam nestes”.
(Heráclito, Frag. B, LXII)
Como sê lê, Heráclito lidava com a morte de uma
maneira muito natural, não oposta à vida, como se fosse a mesma coisa, num
fluxo contínuo, como a vigília e o sono, ou a juventude e a velhice. Assim como acordar e dormir,
viver e morrer são fenômenos complementares. Isso se justifica porque a vida é
uma sequência infindável de mortes; afinal todos os dias morremos um pouco.: “do arco o nome é vida e a obra é morte”, todas
as coisas estão em oposição umas com as outras, o que explica o caráter mutável
de tudo.
Além
disso, graças à biologia, hoje sabemos que as células de nosso corpo morrem e
são substituídas por outras, e é isso que garante a nossa sobrevivência
saudável, apesar de parecer contraditório, a morte é parte indispensável do
processo que chamamos vida, ou seja quando vemos um organismo vivo nunca
percebemos, mas é a morte que mantém ele vivo, como dizia Heráclito: “morte é
tudo que vemos despertos, e tudo que vemos dormindo é sono”
Apesar de ser uma das poucas certezas
inquestionáveis, para nós humanos, a morte é revestida de mistério.
A dificuldade de aceita-la produz a necessidade de
lidar de alguma forma com ela. Para superar essa dificuldade as diferentes
religiões criaram ritos e mitos, moldando a crença de cada povo, na esperança
de conviver melhor com a dor que ela representa. De forma diferente, sem
recorrer às certezas ou aos dogmas, a Filosofia
buscará argumentos racionais para superar o medo final com que nossa existência
nos desafia. Sabemos que vamos morrer, portanto nada melhor do que entende-la
como parte da nossa realidade do que mitifica-la ou trata-la como se fosse um tabu.
Apesar de difícil, a
morte é um tema fundamental para a filosofia a ponto de Schopenhauer (1788-1860),
nos lembrar:
A morte é a musa da filosofia, e por isso
Sócrates a definiu como “preparação para a morte”. Sem a morte, seria mesmo difícil
que se tivesse filosofado (Schopenhauer).
Isso porque a inquietude produzida pela
experiência da morte de alguém próximo nos “tira o tapete” e nos obriga a
pensar no sentido que damos às nossas próprias vidas, no que estamos fazendo
com nós mesmos e com os outros.
Mas sobre a morte os Filósofos nunca
estiveram de acordo, portanto, por meio de alguns fragmentos, vamos pensar
sobre o que alguns deles têm a nos dizer sobre ela.
No diálogo Fédon, que trata do período
que antecede a morte de Sócrates, Platão apresenta sua teoria sobre a
imortalidade da alma. E convida a todos a lidar com a morte de forma tranquila
e serena. Para isso usa a experiência de morte que teve com seu mestre
Sócrates, acusado de corromper a juventude, foi julgado e condenado pela
assembleia ateniense à morte pela ingestão de um veneno, a cicuta. Ao invés de
se desesperar, ou de fugir, aceitou sua sentença e aproveitou seus últimos
momentos para se cercar de seus amigos e deixou um exemplo para a humanidade. Para
Sócrates o verdadeiro Filósofo não teme a morte:
Ao vires um homem
revoltar-se no instante de morrer, não será isso prova suficiente de que não se
trata de um amante da sabedoria, mas amante do corpo? Um indivíduo nessas
condições também será, possivelmente, amante do dinheiro ou da fama, se não o
for de ambos ao mesmo tempo (PLATÃO, Fédon, XIII)
A ideia fundamental
difundida por Sócrates e Platão é que o corpo representa uma prisão para a
alma, portanto a morte representaria a libertação desta, rumo ao mundo das
ideias perfeitas. Portanto nada de ruim haveria na morte.
[...] se ela [a
alma] é pura no momento de sua libertação e não arrastar consigo nada corpóreo,
por isso mesmo que durante a vida nunca mantivera comércio voluntário com o
corpo, porém sempre evitara, recolhida em si mesma e tendo sempre isso como
preocupação exclusiva, que outra coisa não é senão filosofar, no rigoroso
sentido da expressão, e preparar-se para morrer facilmente... Pois tudo isso
não será um exercício para a morte? (PLATÃO, Fédon)
Epicuro, filósofo hedonista, pensava diferente, pois não
haveria motivo para tratar o corpo de forma tão radical e afastado da alma.
Defendia a busca da Felicidade (edaimonia),
mas para isso era necessário a prática da ataraxia - isto é, calma e apatia em
relação aos desejos do corpo. Os prazeres então poderiam ser buscados, mas
sempre de forma moderada pela razão. Para ele a morte não era nada e não
devíamos ficar desesperados esperando por ela:
Habitua-te
a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na
sensação. Donde se segue que um conhecimento exato do fato de a morte não ser
nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe
atribuamos uma ideia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade.
Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no
fato de não viver. É, pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua
vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la. Tolice afligir-se com a
espera da morte, pois se trata de algo que, uma vez vindo, não causa mal.
Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois,
enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais (EPICURO).
Como pensador materialista, Epicuro adotou a teoria do átomo de Demócrito, assim
a morte seria a simples dissociação dessas partículas para se reunirem mais
tarde dando origem a outros seres .
Outro pensador que via a morte de forma
natural, mas alertava que o medo dela
poderia comprometer nossa felicidade era Lucrécio:
É preciso,
antes de tudo, expulsar esse medo do Aqueronte [o rio que separa o mundo dos
mortos e dos vivos] que, penetrando até o fundo de nosso ser, envenena a vida
humana, colore todas as coisas do negror da morte e não deixa subsistir nenhum
prazer límpido e puro (Lucrécio).
Eu seu ensaio “Que filosofar é aprender
a morrer” Michel de Montaigne, dizia que a morte não nos diz respeito e nos
tranquiliza quanto ao tempo que se deixa de viver devido à morte.
Ademais,
ninguém morre antes de sua hora. O tempo que abandonais não era mais vosso que
o tempo que se passou antes de vosso nascimento: e tampouco vos toca (Montaigne).
Na presença iminente da morte, em geral
pensamos em sermos bons, em dizer o quanto
gostamos das pessoas, agradecer pelo fizeram por nós, em perdoar, em revelarmos
segredos, etc. É como se ela nos convidasse a sermos bons, verdadeiros,
corretos, éticos. E mais, em sua presença, é urgente sermos bons,
imediatamente, já. Em seu Tractatus
Lógico-Philosophicus, Wittgenstein
(1889-1951), nos convida a superar o medo de nossa finitude e incerteza do além
com a intensidade do presente:
A morte não
é um acontecimento da vida. Não há uma vivência da morte. Se se compreende a
eternidade não como a duração temporal infinita, mas como atemporalidade, então
vive eternamente quem vive no presente, A nossa vida é infinita, tal como nosso
campo visual é sem limites (WITTGENSTEIN).
Filósofo
existencialista, para Heidegger a presença constante da morte é o que nos
caracteriza enquanto homens, ou seja, ela é o nosso “princípio de
individuação”. Mal nascemos e já temos
ela como possibilidade. Enquanto não morremos, sempre ainda podemos ser algo
que ainda não fomos. Portanto, a morte é o que nos faz completos.
A questão da constituição ontológica
de ‘fim’ e ‘totalidade’, obriga a tarefa de uma análise positiva dos fenômenos
da existência até aqui postergados. No centro destas considerações, acha-se a
caracterização ontológica do ser-para-o-fim em sentido próprio da presença e a
conquista de um conceito existencial da morte. (HEIDEGGER).
Para Sartre, também existencialista, não
devemos temer o sofrimento ou a morte, mas sim o sofrimento ou o nosso fim sem
motivos, em vão. Ele retoma o nada em que a morte converte todas nossas
possiblidades.
A morte é a
nadificação dos nossos projetos, é a
certeza de que um nada total nos espera (Sartre).
Para ele a morte nos faz humanos. O
medo, a fuga ou o apelo ao sobrenatural nos arrasta ao inumano, e mesmo aí o
ser humano é livre para escolher e assumir a responsabilidade pela sua escolha.
Longe de esgotar o assunto, o que
pretendemos aqui foi provocar o pensamento sobre o tema da morte e incentivar a
investigação filosófica. Cabe à cada um tomar para si essa tarefa, lembrando
sempre que filosofar é duvidar e que as
certezas paralisam o pensamento, nos
impedindo de sermos vivos, de sermos simplesmente seres humanos.
EQM: Experiência de Quase Morte
Em 1975 o Doutor Raymond Moody publicou
um livro em descrevia os relatos de pessoas que passaram por experiência de
quase morte (EQM), pessoas que sofrem uma parada cardíaca e são reanimadas, ou
mesmo certas cirurgias, podem acordar com a lembrança de estados alterados de
consciência e alguns elementos em comum foram observados nos relatos.
Apesar da diversidade, cinco características
constantemente são descritas pelos pacientes: sentimento de paz, experiência
fora do corpo, entrar na escuridão, visão da luz e entrar na luz. O psicólogo Kenneth
Ring acrescenta que muitas vezes são descritos: o encontro com parentes
falecidos, a visão de belas cores ou ouvir música, encontrar um ser ou uma
presença e também uma "revisão da vida".
Apesar do fascínio que a EQM provoca,
ela não é a prova definitiva da existência da alma e muito menos da vida depois
da morte, já que se uma pessoa narra a experiência, é justamente porque não
veio à óbito. Médicos e pesquisadores atribuem esse fenômeno às alterações
químicas que afetam o cérebro nesse estado. Sabemos, por exemplo, que a falta
de oxigênio pode afetar a percepção a ponto de produzir alucinações em diversos
casos clínicos.
Apelar para a EQM para provar a vida
após a morte é quase tão irracional quanto tratar um mito como um fato real, só
revela o medo que caracteriza o ser humano que ainda não desenvolveu o
suficiente sua capacidade crítica e racional. A morte é um fato como a própria
existência. Se ninguém tem pavor em existir, então por nos causa tanto medo? As
fantasias e falácias criadas em torno dela paralisam nosso pensamento e
comprometem nossa liberdade. Como dizia Sêneca “não é da
morte que temos medo, mas de pensar nela", quem teme sua
natureza é porque ainda não aprendeu a pensar de maneira filosófica,
O Último Dia
Meu amor
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Ia manter sua agenda
De almoço, hora, apatia
Ou esperar os seus amigos
Na sua sala vazia
De almoço, hora, apatia
Ou esperar os seus amigos
Na sua sala vazia
Meu amor
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
O que você faria se só te restasse um dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Corria prum shopping center
Ou para uma academia
Pra se esquecer que não dá tempo
Pro tempo que já se perdia
Ou para uma academia
Pra se esquecer que não dá tempo
Pro tempo que já se perdia
Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia
Se o mundo fosse acabar
Me diz, o que você faria
O que você faria se só te restasse esse dia
Se o mundo fosse acabar
Me diz, o que você faria
Andava pelado na chuva
Corria no meio da rua
Entrava de roupa no mar
Trepava sem camisinha
Corria no meio da rua
Entrava de roupa no mar
Trepava sem camisinha
Meu amor
O que você faria?
O que você faria?
O que você faria?
O que você faria?
Abria a porta do hospício
Trancava a da delegacia
Dinamitava o meu carro
Parava o tráfego e ria
Trancava a da delegacia
Dinamitava o meu carro
Parava o tráfego e ria
Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Me diz o que você faria
Me diz o que você faria...
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria
Me diz o que você faria
Me diz o que você faria...
REFERENCIAS:
Vídeo
O Último Dia
EQM
Nova Escola
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vol. 2. Trad. Márcia de
Sá Cavalcante. 5º Ed. Petrópolis RJ: Vozes, 1997.
MONTAIGNE. Os Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
SARTRE, Jean-Paul. O
ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de
Paulo Perdigão. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997
Atividades avaliativas:
Comente e lembre de se identificar corretamente.
Comente e lembre de se identificar corretamente.
1. Discuta o
significado da frase de Montaigne "Quem ensinasse os homens a morrer, os
ensinaria a viver", e comente aqui as conclusões do grupo.
2. Após ler e refletir sobre a letra da música
de Paulinho Mosca, responda: O que você faria hoje se soubesse que iria morrer
amanhã?
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