quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O Momento Socrático: Cuidado e Conhecimento de Si Mesmo



Arlindo Picoli
Na Apologia de Sócrates, sabemos por meio de Platão, que Sócrates é o encarregado pelos Deuses de lembrar e incentivar os homens a ocuparem e cuidarem de si mesmos. Ao proclamar o cuidado de si em Atenas, ele abre mão de uma série de situações consideradas vantajosas, como fortuna e cargos de poder e que agindo assim, conseguiu despertar, pela primeira vez, os cidadãos de Atenas de um profundo sono. Portanto o cuidado de si é a realidade mais admirável, pois proporciona algo equivalente a uma vida consciente, ativa e desperta.
Como relatado em O Banquete, Sócrates dominava a anakhóresis, prática do retiro em si mesmo, bem como a técnica de resistência. Andava descalço sobre o gelo com mais facilidade do que faziam seus companheiros calçados, e podia manter-se imóvel durante todo um dia e uma noite. Tudo isso parece indicar a sua maestria nas técnicas do cuidado de si.
Quando o “conhece-te a ti mesmo” surge na filosofia, precisamente com Sócrates, aparece como uma aplicação particular de uma regra mais geral: o cuidado de si. No Primeiro Alcibíades, Sócrates só decide abordar Alcibíades porque percebeu que ele não se contenta mais em desfrutar de sua beleza, riqueza e influência; ele quer se tornar um político, ele quer “transformar o privilégio de status, a primazia estatutária em governo dos outros” (FOUCAULT, 2004, p. 44). Sócrates diz que ele deve aplicar seu espírito sobre si mesmo, pois, para ser um político, deve o indivíduo saber as qualidades que possui. Ele deve pensar nos seus rivais de dentro de Atenas, e também nos de fora da cidade, sejam espartanos ou persas. Tanto os rivais de Esparta quanto os da Pérsia tiveram uma educação melhor que Alcibíades, pois ele ficou aos cuidados de um escravo ignorante. Conhecendo-se a si mesmo prudentemente, ele pôde perceber sua inferioridade não só na educação, mas também na riqueza e na incapacidade de ter um saber, uma tékhne a qual compensasse essas diferenças. No diálogo que trava com Sócrates, Alcibíades entende que não é capaz de definir o que é o bom governo da cidade, e admite ser possível que tenha sempre vivido em estado de ignorância. E é neste momento que Sócrates o anima, afirmando, para tanto, que se ele tivesse percebido isto com cinqüenta anos, não seria nada fácil tomar-se a si mesmo em cuidado: epimelethênai sautou, mas ao contrário, ele está justamente na idade certa para isto (FOUCAULT, 2004, p. 47).
No Primeiro Alcibíades, Foucault destaca quatro características do cuidado de si. Partindo de um privilégio, em primeiro, ocupar-se consigo mesmo é condição para governar os outros. Segundo, o cuidado de si mesmo pode compensar a insuficiência na educação, atribuída à ignorância de seu pedagogo, bem como sua educação erótica, fruto do tipo de interesse dos seus amantes, os quais, apenas desfrutaram de sua beleza e não o incentivaram a cuidar de si mesmo. Em terceiro, ele está na idade correta, por não estar mais na mão dos pedagogos e, ademais, na medida em que atingiu determinada idade, seus amantes desinteressaram-se por ele. Aqui, o cuidado de si é “uma necessidade de jovens numa relação entre eles e seu mestre, ou entre eles e seus amantes, ou entre eles e seu mestre e amante” (FOUCAULT, 2004, p. 49). Em quarto, por fim, há a ignorância do objeto. Alcibíades não sabe o objetivo e o fim da concórdia dos cidadãos como atividade política. Por não saber o que é o bom governo, precisa cuidar de si mesmo.



Vemos, então, surgir, a partir do cuidado de si duas questões. A primeira diz respeito ao sujeito: o que é o si mesmo? E a segunda: qual é a tékhne para um bom governo? “Qual o eu de que devo ocupar-me a fim de poder, como convém, ocupar-me com os outros a quem devo governar?” (FOUCAULT, 2004, p. 51). Resumindo as duas perguntas: o que é o si mesmo, e o que é o cuidado necessário para governar os outros?
Para responder a essas questões, seguiremos as analogias de Sócrates, nas quais diferenciamos os sujeitos e aquilo do qual se servem. Podemos distinguir, na arte da sapataria, os instrumentos, como o cutelo, e o sapateiro. O mesmo verifica-se na música, na qual distinguimos a cítara de seu músico. Mas, e quando agitamos a mãos? Temos aí as mãos e aquele que se serve delas, o sujeito. O corpo não pode servir-se do corpo, o elemento o qual se serve das mãos, dos olhos, da linguagem e de todo o corpo só pode ser a alma. Servir-se este que, em grego khrêsthai/khrêsis, indica um comportamento, uma atitude, relações com os outros e consigo mesmo, mas que não é instrumental, nem substancial, mas sim transcendente e subjetiva.
Ao concebermos a alma enquanto sujeito, o cuidado de si passa a distinguir-se em três outros tipos de atividades. Sócrates enuncia o exemplo do médico: quando o médico adoece e aplica sobre si sua arte médica, podemos dizer que ele se ocupa consigo mesmo? A resposta é não, pois ele está se ocupando com o corpo, e não com o si mesmo da alma. A segunda atividade é a economia: quando um proprietário ocupa-se com suas posses, seus bens e sua família, ele está se ocupando consigo mesmo? Não, ele está se ocupando com o que é dele, e não consigo mesmo. Os pretendentes de Alcibíades ocupavam-se com o próprio Alcibíades? Da mesma forma que nos exemplos anteriores, a resposta é negativa, haja vista que eles estavam ocupados com a beleza de seu corpo. Na verdade, quem cuida de Alcibíades é Sócrates, pois apenas ele cuida de sua alma. Sócrates é muito mais que um professor sofista, é mais que um pedagogo, é o mestre da epiméleia heuatoû, pois:

Diferente do professor, ele não cuida de ensinar aptidões e capacidades a quem ele guia, não procura ensiná-lo a falar nem a prevalecer sobre os outros, etc. O mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem pelo seu discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio (FOUCAULT, 2004, p. 73).

Sendo assim: o que é o ‘eu’ com o qual é preciso ocupar-se? A alma. O que é ocupar-se consigo mesmo, o que é o cuidado de si? É conhecer a si mesmo, gnôthi seautón. Foucault nos diz que o aparecimento dessa referência ao “conheça a si mesmo”, no Primeiro Alcibíades, é totalmente diferente de outras duas anteriores. Enquanto a primeira surge como prudência, para que Alcibíades relacione suas ambições com suas capacidades, isto é, para que ele perceba suas limitações e a importância em ocupar-se consigo mesmo; a segunda ressurge para responder quem é o si mesmo com que se deve ocupar. E, finalmente, agora o gnôthi seautón emerge de maneira direta e decisiva, para dizer que o cuidado de si é o conhecimento de si mesmo. E este momento afetará toda a cultura greco-romana. A partir daí, surge a justificativa para que o cuidado de si, ou seja, para que todas as práticas espirituais, sejam organizadas em torno do “conheça a ti mesmo”. Apesar disso, em Platão, o conhecimento de si é apenas um aspecto extremamente importante do cuidado de si, relação esta que será revertida alguns séculos depois pelo neoplatonismo. (FOUCAULT, 2004, p. 216).
E como devemos nos conhecer? Para chegar a esta resposta, Sócrates parte do exemplo do olho e do espelho. Quando nos vemos no olho de alguém, semelhante a nós, vemos-nos a nós mesmos. Mas este si mesmo que se vê não é graças ao olho, mas à visão, a qual é também no olho do outro. Para a alma ver-se, é preciso que se volte para um elemento de sua própria natureza. E qual é a natureza da alma? O pensamento e o saber. Sendo divinos o pensamento e o saber, a alma deve voltar-se para o divino, com o fim de conhecer-se a si mesma e receber a sabedoria, sophrosýne. De maneira que, a alma conhecerá a diferença entre o bem e o mal, entre o verdadeiro e o falso, e saberá, enfim, governar a cidade.
No final do diálogo, Alcibíades compromete-se a ocupar-se com a justiça, pois ocupar-se consigo mesmo ou com a justiça, são equivalentes, já que tudo surgiu a partir da preocupação em se tornar um bom governante. Infelizmente isto não se deu, e é o mesmo Alcibíades que, já mais velho, no O Banquete, lamenta ao dizer que acabou envolvendo-se com os assuntos políticos de Atenas em vez de cuidar de si mesmo (FOUCAULT, 2004, p. 215).
A questão do cuidado de si implica uma atitude ou um conjunto de atitudes, mediante as quais o sujeito transforma-se a si mesmo e que estão relacionadas a uma conversão do olhar, ou seja, uma mudança no foco da atenção, que se desloca daqueles valores considerados importantes pela maioria (ói polloí) em direção àqueles que são cuidados por poucos (ói prôtoi), tais como a alma, o pensamento e a verdade. quando impera o privilégio do conhece-te a ti mesmo não são mais as ações de transformação do sujeito e as atitudes que têm primazia, mas o conhecimento como ingresso na verdade. É justamente neste momento do cuidado de si em sua relação com o “conheça a si mesmo”, ou seja, o momento socrático, no qual Foucault localiza a passagem da espiritualidade à filosofia. Enquanto a espiritualidade consistia em atividades constituintes do sujeito, a filosofia passou a se ocupar com o acesso à verdade.

REFERENCIAS:

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins F ontes. 2004.

PLATÃO.  Alcibíades I e II. Lisboa: Editorial Inquérito. S.d.


EXERCÍCIOS:
Investigue as práticas do zen-budismo e escreva um relato dessa experiência indicando elementos do cuidado de si.


2 comentários:

Jair Paiva disse...

Excelente, Arlindo! Parabénss!! Texto lindo, limpo, simples e profundo!! Abração!

Picoli, A. R. disse...

Obrigado Jair, um elogio vindo de uma mente brilhante como sua só pode me deixar orgulhoso.