sábado, 11 de dezembro de 2010

sábado, 9 de outubro de 2010

Subjetividade, cultura e educação: a construção de si mesmo.



Arlindo R. Picoli

Michel Foucault foi um filósofo francês que se dedicou a entender a formação no sujeito em nossa história. A palavra sujeito diz respeito a nossa realidade interior, indica nossas emoções e pensamentos e é identicado com outros termos como eu, alma ou espírito. Ao contrário de Descartes que pensava ser o sujeito uma substância, Foucault vai afirmar que ele é na verdade uma forma, o que implica dizer que o  sujeito nem sempre é idêntico a sim mesmo. Portanto a característica fundamental do sujeito é a mudança e não a permanência ou a identidade. Isso nos leva a suspeitar da validade universal da natureza humana e a conceber uma ética ou moral que é antes de tudo um trabalho artesanal, único e singular de mesmo.
Em Foucault a ética é justamente a prática da liberdade, numa relação circular em que a liberdade é a condição ontológica da ética. Na antiguidade, a ética se estabeleceu em torno do preceito do cuidado de si, de tal forma que era preciso conhecer as verdades, prescrições e regras de conduta para trabalhar sobre si e praticar a liberdade, para assim construir um ethos que fosse bom, belo, honroso, respeitável, memorável e que pudesse servir de exemplo, de inspiração para os demais. E se quisermos aprender as práticas que tornam possível o ethos, precisamos entrar em um jogo de verdade, mesmo que seja um jogo transmissor de conhecimentos, tomando todo cuidado para não exercer a autoridade como dominação.
A liberdade é, portanto, em si mesma política. Além disso, ela também tem um modelo político, uma vez que ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem dos seus apetites, o que implica estabelecer consigo mesmo uma certa relação de domínio, de controle, chamada de arché – poder, comando (FOUCAULT, 2004b, 270).

Desta forma, surge em Foucault uma outra concepção de poder, um poder subjetivo, independente da normalização e que atribui ao sujeito a capacidade de libertar-se da sujeição dos poderes externos, do biopoder e do poder disciplinar, constituindo-se à sua própria maneira, governando a si mesmo.
Assim como no hospital, a família e a prisão, o poder disciplinar e o biopoder encontram na escola mais um local para serem exercidos, a escola fabrica subjetividades conhecidas e determinadas pelo biopoder. As disciplinas escolares são uma forma produtiva e eficiente de lidar com o espaço e o tempo, vigilância e registro de informações, conforme o anseio por determinado tipo de sujeito, de mão-de-obra ou de cidadão almejado, pela sociedade, família, governo e mercado de trabalho. Como o poder disciplinar é um impedimento para exercermos  nossa liberdade, precisamos pensar alternativas que criem outros mecanismos a serviço da produção de si mesmo. Trata-se de, na medida do possível, inventar novas técnicas eficazes, que organizando o espaço, o tempo e as informações, possibilitem as transformações de si mesmo[1]. Outro caminho seria pesquisar em que medida poderíamos estudar, testar e adaptar as disciplinas, regras e austeridades próprias do cuidado de si da antiguidade para os dias de hoje. Se as práticas pedagógicas ajudam o estudante a desenvolver, maximizar e motivar o seu contato com diversas áreas de saber, além do desenvolvimento de diversas capacidades, também podem ser um meio para a experiência de si mesmo.
Se concebermos a educação como um conjunto de técnicas transformadoras, como um trabalho ético que o indivíduo faz sobre si mesmo, poderemos dar um passo importante para resgatar a parrhêsia, a coragem da verdade socrática, em que o indivíduo constrói-se eticamente, independente do que possa pensar a maioria. Podemos pensar a educação numa relação com a parrhêsia e a vida, que funcione como alternativa ao controle do biopoder, justapondo à redução da existência humana meramente produtiva e reprodutiva, pelo desenvolvimento de uma vida mais autêntica feliz e bela.
No que se refere ao platonismo, Foucault nos mostra que o caminho traçado no Primeiro Alcibíades, o objeto do cuidado é a alma, assumindo a forma do conhecimento; em outro diálogo, no Lacques, o objeto do cuidado passa a ser a bios, ou seja a vida, e para efetuar este cuidado, é preciso formar a própria existência através de regras e técnicas capazes de proporcionar uma vida bela (GROS, 2004, p.162).

[...] eu queria tentar mostrar, e mostrar a mim mesmo, como globalmente a existência, a bios, foi constituída no pensamento grego, e, eu creio, pela emergência e pela fundação da parrhêsia socrática, como a existência e a bios foi constituída como um objeto estético, como objeto de elaboração e de percepção estética, a bios como uma obra bela. E eu creio que tenho a abertura de um campo histórico de uma grande riqueza. Há, certamente, a fazer a história da metafísica da alma; há também a fazer quem é, até certo ponto, o outro lado e também a alternativa, uma história estilística de da existência, ou ainda uma história da vida como beleza possível[2]

Outro deslocamento importante em se tratando da vida, indicado por Foucault, diz respeito à ética estóica e cínica. Enquanto a ética estóica exigia necessariamente uma correspondência entre o agir e o falar, colocando a verdade à prova, ordenando a existência e trabalhando a verdade como regularidade; a ética cínica da parrhêsia colocava a própria vida à prova para verificar até que ponto as verdades realmente podem ser vividas, desenvolvendo uma verdade como ruptura, recusa e denúncia. Em ambas “não se trata da fundação de uma moral que busca o bem e se afasta do mal, mas da exigência de uma ética que persegue a verdade e denuncia a mentira” (GROSS, 2004, p. 166).
Infelizmente as práticas pedagógicas são usadas, muitas vezes, como um fim em si e não um meio, atreladas como estão a uma repetição impensada e acrítica. Acreditamos que a problematização destas ações é urgente, principalmente para que não sejam usadas apenas para transmitir verdades, ou memorizar saberes, mas para que também possibilitem a escola como espaço de resistência e criação de formas alternativas de existência.
As práticas pedagógicas poderiam se converter em fazeres produtores de liberdade, recusando-se à fabricação de subjetividade próprias da biopolítica, apresentando a verdade dos saberes como um jogo importante dentro das regras a que estamos submetidos, mas mesmo assim apenas um jogo, e não necessariamente único. Por outro lado precisamos resistir às formas de normalização e homogeinação que submetem todo o corpo escolar às interferências de poderes e saberes exteriores, normalizados e inquestionados, que reduzem a educação a uma fábrica de recursos humanos. Sem descartar necessariamente a importância da formação para o trabalho, para nossa sobrevivência, devido às regras já estabelecidas pelo biopoder, é preciso possibilitar nos sistemas de ensino o trabalho artístico de uma vida bela, direcionada por uma alma que constrói a si mesma, atualizando a ética do cuidado de si.
O atual discurso pedagógico dominante, voltado para a qualificação, para a aquisição de habilidades e competências, afasta os sujeitos da possibilidade de estabelecerem certas relações consigo próprios, uma vez que é sempre um certo conhecimento de fora, exterior ao próprio sujeito, que permite o acesso à verdade sobre si, a seu pensar bem, a seu agir correto, a seu proceder responsável, a seu sentir solidário. “Enquanto a exigência das normas é interna ao organismo, a normalização que se estabelece na sociedade deve-se a uma escolha e uma decisão exteriores ao objeto normalizado” (PORTOCARRERO, 2006a, p. 7). A ampla gama de verdades das habilidades e competências já não é mais resultado de um movimento de transfiguração do próprio sujeito, mas de seu grau de conformidade a certos padrões antecipados e exteriormente estabelecidos.
Ao mesmo tempo em que importa discursos, a escola também exporta subjetividades moldadas conforme os padrões desejados, e, a este respeito, não podemos esquecer a metáfora inspiradora de Foucault quando tratava de alguns temas de Diferença e Repetição de Deleuze:

[...] pertencemos à escola de um mestre que só pergunta a partir das respostas inteiramente escritas em seu caderno: o mundo é nossa sala de aula. Ínfimas crenças. Mais quais? A tirania de uma vontade boa, a obrigação de pensar “em comum” com os outros, o domínio do modelo pedagógico, e sobretudo a exclusão da tolice, eis toda a vilania moral do pensamento, da qual seria fácil sem dúvida decifrar o jogo em nossa sociedade. É preciso nos libertarmos disso. (FOUCAULT, 2005a, p. 242).

Conforme já vimos, o indivíduo não se constrói sozinho, necessita do outro; ninguém aprende a cuidar de si sozinho, mas sempre com a ajuda de um mestre (Foucault, 2004a, p. 58). Sócrates ensina um modo específico e particular de acenar para o papel do mestre: ele afirma uma relação pedagógica em que o mestre não transmite ao aluno o que ele pressupõe que sabe e que o outro ignora, mas uma certa relação de cuidado consigo.
Apesar da noção de cuidado de si aparentemente sugerir, hoje em dia, uma preocupação exclusiva consigo mesmo, uma espécie de egoísmo narcisista, em Sócrates, o cuidado de si, passa pelo cuidado do outro. Quando Sócrates se preocupa com Alcibíades no diálogo homônimo, o que justifica o cuidado de si é o governo da pólis. Se Sócrates renunciou a participar nos assuntos da política, como explicita na Apologia, não foi por temer a morte, mas por afirmar um outro campo de intervenção política na formação dos cidadãos, que Foucault denomina de parrhêsia ética ou filosófica frente às clássicas formas de dizer a verdade na Grécia clássica: a parrhêsia do político, do profeta, do sábio e do sofista (Foucault, 1984b, p. 11). Com efeito, Sócrates não se pronuncia na Assembléia ou no Conselho de Atenas, porque ali a verdade está submetida à lógica da retórica; não reproduz a palavra profética, mas a coloca à prova em seus efeitos na realidade; não fala, como o sábio, das coisas e da ordem do mundo, mas da alma e do como se deve viver; finalmente, não acredita, como o professor tradicional, o sofista, possuir saberes ou técnicas que o aluno deve aprender. Ao invés disso, ele está empenhado numa relação consigo mesmo que o aluno pode também afirmar para si. Leiamos Foucault:

[...] em relação à palavra do ensino, Sócrates estabelece uma diferença, se vocês quiserem, por reversão. Onde o professor diz: eu sei e tu escutas-me, Sócrates vai dizer: eu nada sei e se eu me ocupo de ti, não é para te transmitir o saber que te falta; é para que, compreenda que nada sabes, aprendas por isso a te ocupar de ti mesmo [3].

Uma educação não é individualista por se ocupar do individuo, mas pelas relações que propicia nos indivíduos consigo e com os outros. A educação atual, que se pretende ou que se diz socializadora, lança mão de estratégias – como os processos de avaliação, que têm como foco um indivíduo capaz de produzir sozinho, capaz de competir com os outros –, recompensando, na escola ou fora dela, como nos diversos concursos, os momentos da reprodução individual dos conhecimentos ou competências adquiridas.
No cuidado de si, o mestre busca que o aluno cuide de si, mas não para se fechar ou se destacar sobre os outros. O sentido da intervenção do mestre é fazer com que o discípulo se desloque do modo de ser no qual está. Na questão do cuidado de si – tanto como conhecimento de si quanto como experiência de vida –, o que está em jogo é uma maior atenção para o que, nas discussões pedagógicas, muitas vezes é desconsiderado, ou seja, a constituição dos sujeitos não apenas de determinado modo de ser, mas também de um estilo de viver.
No livro VII de A República (518c-d) fica claro que Sócrates concebe a educação como uma técnica de conversão, uma prática que redireciona a alma para si mesma.  Nestes termos, caberia a educação encontrar as maneiras mais eficientes e fáceis proporcionar este movimento para si mesmo.
Se pudermos nos valer do cuidado de si para ressignificar a educação, é preciso lembrar a necessidade de que nós, educadores, ocupemo-nos também de nós mesmos. O que nos parece importante ressaltar é que as discussões pedagógicas, muitas vezes, se limitam a questões metodológicas do aprendizado, da avaliação, do currículo, formação continuada, etc., elas pouco se atêm à construção tanto do professor quanto do aluno. Assim é importante afirmar que para que o professor se torne mestre e ajude o aluno a alterar o seu modo de ser, é preciso que antes, como o mestre apontado por Foucault, ele cuide de si mesmo.
Foucault localiza no Primeiro Alcibíades três tipos de maestria relacionadas à ignorância e a memória. O primeiro é a maestria do exemplo, em que o outro é um modelo indispensável para a formação do jovem. O segundo a maestria da competência que envolve a transferência de saberes, fundamentos, aptidões, habilidades, capacidades, etc. E para terminar, a maestria socrática, do embaraço e da descoberta praticada no diálogo (FOUCAULT, 2004a, p. 158).

A mestria socrática é interessante na medida em que o papel de Sócrates consiste em mostrar que a ignorância, de fato, ignora que sabe, portanto, que até certo ponto o saber pode vir a sair da própria ignorância. Todavia, o fato da existência de Sócrates e a necessidade do questionamento de Sócrates provam que, não obstante, este movimento não pode ser feito sem o outro (FOUCAULT, 2004a, p. 159).

Deixemos de lado o modelo dos professores modelados pela sociedade atual, reprodutores de habilidades e capacidades, para nos transformarmos em mestres, focalizados na potencialidade de auto-construção de cada aluno.
Sócrates mostra que só pode provocar no outro certo trabalho quem já realizou esta atividade consigo mesmo. Em outras palavras, o professor não pode ocupar uma posição de exterioridade do caminho que ele convida o aluno a percorrer.
Nos termos que interessam a Foucault, Sócrates só pode ser mestre do cuidado porque ele cuida de si. Contudo, Sócrates cuida de si de uma maneira especial: ocupando-se com os outros. Assim, o cenário socrático do cuidado de si sugere que, se uma prática educacional busca intervir no modo de ser e de estar no mundo dos seus atores, é preciso, antes de mais nada, que o professor se ocupe consigo mesmo. E cuidará de si fazendo com que os outros também tomem conta de si. Eis o paradoxo do cuidado de si, que não é apenas o paradoxo de Sócrates, mas o do professor que se torna mestre, antigamente, hoje e sempre: cuidar de si somente através do cuidado do outro.
Embora nossa defesa da incorporação prática do cuidado de si possa sugerir uma inversão vingativa da relação desequilibrada entre prática e teoria, entre o cuidado e o conhecimento, ela é na verdade uma reorientação e fusão de ambas. Assim, propomos uma nova concepção da escola, como espaço privilegiado de cultura de si, inspirado pelo fenômeno quase universal do período de ouro do cuidado de si e do momento socrático.
Para especificar a ampla divulgação do cuidado de si durante o tempo greco-romano a ponto de se tornar um acontecimento cultural, e para não usar este termo de forma vaga, Foucault estabelece quatro condições para justificar o que foi a cultura do cuidado de si. A primeira delas estabelece que “dispomos de um conjunto de valores que têm entre si um mínimo de coordenação, de subordinação, de hierarquia(FOUCAULT, 2004a, p. 220). Depois que “estes valores sejam dados como sendo ao mesmo tempo universais, mas não acessíveis a qualquer um” (FOUCAULT, 2004a, p. 220). Para atingir estes valores não é tão fácil, é preciso esforçar-se por toda vida, já que, “são necessárias certas condições precisas e regradas(FOUCAULT, 2004a, p. 220).  E finalmente a quarta condição estabelece que o acesso a estes valores esteja “condicionado por procedimentos técnicos mais ou menos regrados, que tenham sido elaborados, validados, transmitidos, ensinados, e estejam também associados a todo um campo de saber” (FOUCAULT, 2004a, p. 221). Resumindo, a cultura de si é um ”campo de valores organizado, com suas exigências de comportamentos e seu campo técnico e teórico associado” (FOUCAULT, 2004a., p. 222).

[...] se chamarmos cultura ao fato de que esta organização hierárquica de valores solicita do indivíduo condutas regradas, dispendiosas, sacrificiais, que polarizam toda a vida; e enfim que esta organização do campo de valores e o acesso a estes valores só se possam fazer através de técnicas regradas, refletidas e de um conjunto de elementos que constituem um saber, então, nesta medida, podemos dizer que na época helenística e romana houve verdadeiramente uma cultura de si (FOUCAULT, 2005, p. 221).

VEIGA-NETO (2006a, p. 30) acredita que “o caráter de dominação dos processos educacionais nada tem em si de lamentável”. E acrescenta: “não há como imaginar uma cultura, qualquer cultura, sem ações continuadas e minuciosas ‘daqueles que já estavam ai’ sobre aqueles que ‘não estavam ai’”.  Contudo, se concebermos a cultura como um processo dinâmico em que os valores são constantemente questionados e criticados, gerando novas maneiras de ser e agir, veremos que a ação cultural de uma geração sobre outra não se dá sem resistências daqueles que chegam e provocam modificações culturais, muita vezes lentas e sofridas. Por outro lado, apesar da sua ampla difusão no período de ouro, a cultura de si prosseguia como outra forma de viver, sua universalização nunca foi absoluta, envolvia muitos esforços e permanecia como uma alternativa a outros estilos de vida. De nossa parte, lamentamos muito que a educação continue sendo um processo de dominação cultural elaborada pelos que já estavam aqui, e tenhamos perdido o contato as tecnologias do eu. É por isto que propomos o seu regate histórico, prático, e sua adaptação aos dias de hoje, como uma alternativa de crítica, de prática de liberdade à cultura já constituída, através da educação.
O nosso grande problema é que grande parte dos professores – e também dos funcionários que muitas vezes se colocam hierarquicamente como fiscalizadores do ensino - permanecem presos à perspectiva da recognição de conteúdos, privilegiando a síntese do conhecimento científico, universal e impessoal, e raramente de algo parecido com o cuidado de si mesmo. Com efeito, não encontramos na escola uma relação como a de Sócrates e Alcibíades, ou qualquer de seus discípulos. Apesar das condições atuais serem completamente diferentes da antiguidade, ela permaneça como possibilidade, pois a busca para fazer a experiência de si mesmo permanece. Além disso, a amizade que se estabelece entre alunos e professores é ainda hoje, como na antiguidade, uma condição para a produção cuidadosa de subjetividades.

Para o último Foucault, é possível, na prática singular da amizade, inventar uma relação não normalizada com o outro, visto que os amigos inventam formas de relações singulares. Os modos de vida dos amigos podem fazer surgir sistemas não normativos entre os seres (PORTOCARRERO, 2008b, p. 14).

Partimos da hipótese que a educação contemporânea produz um vazio resultado da tensão meramente conteudista das diversas áreas do saber, das regras de conduta e da subjetivação imposta ao aluno. Tal vazio ocorre porque embora úteis para o mundo moderno, estes conhecimentos e práticas não são capazes, por elas mesmas, de efetuarem a transformação do sujeito, que segue sentindo a falta de algo: a necessidade de ser singular.
Assim propomos o cuidado de si como uma experiência de pensamento no espaço escolar. E para isto, é bom lembrar que, dentre as três formas de experiências que Foucault se move, nos referimos a mais tardia, como forma histórica de subjetivação[4], e isto,
                    
[...] implicava duas tarefas negativas: uma redução nominalista da antropologia filosófica e também das noções que podiam apoiar-se nela, e um deslocamento em relação ao domínio, aos conceitos e aos métodos da história das sociedades. Positivamente, a tarefa era trazer à luz o domínio em  que a formação, o desenvolvimento, a transformação das formas de experiência podem ter lugar; ou seja uma história do pensamento. Por ‘pensamento’ entendo o que instaura, em suas diferentes formas possíveis, o jogo do verdadeiro e do falso e que, em conseqüência, constitui o ser humano como sujeito de conhecimento; o que funda a aceitação ou o rechaço da regra e constitui o ser humano como sujeito social e jurídico; o que instaura a relação consigo mesmo e com os outros e constitui o ser humano como sujeito ético (FOUCAULT, 1994c, 579) (tradução nossa).
 Portanto, para colocarmos a subjetivação nas mãos de cada aluno, é preciso efetuar um expurgo antropológico, rejeitando a idéia de um sujeito único e fixo (a consciência, a razão, a humanidade). O que Foucault chama de a ‘morte do homem’ é o aporte negativo da experiência e que afasta seu pensamento das filosofias do sujeito e das ciências humanas modernas. Por outro lado, não podemos esquecer que o sujeito é o eixo de todo o trabalho histórico-filosófico de Foucault apresentado como uma análise histórica dos diferentes modos de subjetivação.
Em uma perspectiva libertadora, precisamos abandonar a idéia de um sujeito pré-formatado e questionar alguns sentidos atribuídos à autonomia. A autonomia não pode ser reduzida aos deveres que cada um deve adotar para se adequar a um modelo previamente aprovado de determinada forma de ser.  Precisamos, de fato, perguntar constantemente pela razão e por qual motivo estamos nos tornando o que somos, deslocando a autonomia para que ela passe a ser a problematização  das normas e de nossa forma de ser.
Por outro lado, em sua relação com a verdade e o poder presentes na cultura dominante o currículo escolar peca pelo utilitarismo excessivo. O importante é privilegiar aquelas áreas que fazem a diferença no ingresso competitivo das seleções para o trabalho, ou que possibilitam o ingresso no ensino superior. Tal fato justifica a hierarquia entre as disciplinas e afeta até mesmo o interesse dos alunos.  Entretanto, a escola não deveria ser reduzida ao que é determinado por instâncias políticas e econômicas exteriores, negligenciando o que poderia ser uma formação muito mais plena do aluno, se promovesse a cultura como um todo, incluindo a própria cultura do aluno, resultado de sua experiência no mundo, assim como a cultura do cuidado de si. 
Reconhecemos em todos os cantos da escola a importância utilitária dos conhecimentos adquiridos sem que se perceba que o que é tido por útil pode não sê-lo. Ora, quem busca algo útil está procurando um bem para si mesmo e não um mal. Como vimos anteriormente, para Epicteto fazer o mal era procurar algo por sua utilidade, sem se dar conta de seu aspecto nocivo, tomando por verdadeiro o falso, assim era fundamental que o discípulo efetuasse uma crítica constante de si que evitasse fazer o mal e continuar pensando que era algo útil e bom. Portanto, quem busca a utilidade de algo sem se dar conta de seu possível aspecto nocivo, tomando algo inútil como útil, está se prejudicando. Ao reduzir o sentido da educação a um conjunto de saberes que preferencialmente qualificam para exercer determinada atividade em troca de dinheiro, prestígio social, e poder, esquecendo antigos norteadores de si mesmo, como a felicidade, pureza ou sabedoria; não estaríamos tomando um mal por um bem? Não estamos negando a importância da qualificação para o trabalho em reduzir, em parte, algumas desigualdades na sociedade atual, mas será que podemos atribuir a nossa existência um objetivo de consumo sempre maior de bens e serviços? Temos tanta certeza assim que apenas um emprego bem remunerado vale uma vida inteira? Como é a liberdade que tal educação proporcionará? Há aqueles que oferecem suas vidas por uma falsa utilidade, por um mal maquiado de bem, uma verdade sutilmente proclamada, segundo a qual o conhecimento bom e válido é aquele útil, apenas no sentido de ser capaz de gerar mais lucro e consequentemente mais poder. Portanto proporcionar experiências de pensamento, problematizando o sentido do que útil, é urgente, pois pode possibilitar subjetividades mais criteriosas e livres da aparente utilidade dos conhecimentos.
De quem é a responsabilidade pela formação de gerações inteiras cujo objetivo maior é: “ser alguém na vida”?  Esta expressão espontânea dos alunos, que bem poderia ser uma apologia do período de ouro do cuidado de si, traz indiretamente o castigo social a todos os seus fracassados, condenados a uma inexistência simbólica, porém real.  Não é à toa que o tema da inclusão se tornou tão urgente na educação. Cada vez mais próxima do antigo monstro que desafiava Édipo, “decifra-me ou te devoro”, hoje a esfinge moderna proclama: “saiba o que eles querem ou te excluo”. Como a escola se converteu em fábrica de sujeitos que nunca conheceram a possibilidade de outras formas de existir, diferente do que pensa a maioria? 
Isto tudo nos remete à importância que a verdade adquire na escola. Pensamos que a verdade escolar, fundada em uma síntese do discurso científico e acadêmico, está sujeita a uma série de interferências políticas e econômicas. A verdade “é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação) (FOUCAULT, 2005b, p.13). Além disso, para ter acesso a esta verdade o sujeito tem que ser disciplinado, adestrado, uma vez feito o condicionamento, o domador pode se retirar para se apropriar de um ser mais manso e previsível. “A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 1987, p. 143). A disciplina é o método que proporciona o controle do corpo, estabelecendo uma relação de docilidade e utilidade: quanto mais obediente mais ganha em suas habilidades.

As disciplinas – seja no eixo do corpo, seja no eixo dos saberes – funcionam como códigos de permissão e interdição. Elas funcionam como um substrato de inteligibilidade para variados códigos e práticas segundo os quais se dão determinadas disposições, aproximações, afastamentos, limites, hierarquias e contrastes, de modo que, por si só e silenciosamente, elas não apenas engendram determinadas maneiras de perceber o mundo e de atuar sobre ele, como também separam o que é (considerado) verdadeiro daquilo que não o é (VEIGA-NETO, 2006a, p. 26).

Para Lenoir (apud VEIGA-NETO, 2006a, p. 26), a disciplina funciona como um  instrumento de conhecimento e comunicação, racionalizando e economizando a produção. Além disso, “as disciplinas agem discretamente: encobrem, sob o manto dos saberes que elas mesmas organizam, o poder a que tais saberes dão sustentação e colocam em funcionamento” (LENOIR apud VEIGA-NETO, 2006a., p. 27), reduzindo a vontade de resistir.
No entanto, caberia uma distinção entre o poder disciplinar e a dominação própria da violência:

De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes. Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro pólo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder que o ‘outro’ (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis (FOUCAULT apud VEIGA-NEITO, 2006a, p. 28-29).

Por outro lado, na escola, disciplina também é o nome dado às áreas em que se divide o saber, o que garante uma profundidade e uma economia evidente em cada uma delas. A princípio, nada disso impede o diálogo entre os saberes, mas um grande problema de nossa cultura é o efeito da hierarquização destas áreas de conhecimento, dentro e fora da escola. A supervalorização de determinados saberes provoca um distanciamento entre as disciplinas, criando uma ilusão, não só de independência, mas também de isolamento.  Portanto, longe de pretender pulverizar as disciplinas em uma unidade totalizante, como parece ser o caso de algumas pedagogias interdisciplinares[5], e que muitas vezes resultam na criação de novas disciplinas, seria muito mais eficaz garantir as especificidades de cada conhecimento juntamente com a possibilidade de atravessá-las de diferentes maneiras, como parece pretender o discurso da transdisciplinaridade[6] (FEITOSA, 2004, p. 96).
Certamente, é devido a este caráter eficientemente produtivo da especialização do saber, próprios das disciplinas escolares, que Foucault parece não ver nenhum problema na prática pedagógica da transmissão do conhecimento, chegando a duvidar que uma prática autodidata possa resultar em alguma melhoria:

Nada prova, por exemplo, que na relação pedagógica – quero dizer, na relação de ensino, essa passagem que vai daquele que sabe mais àquele que sabe menos – a autogestão produza os melhores resultados; nada prova, pelo contrário, que isso não paralise as coisas (FOUCAULT, 2004b, p. 223).

 Como vimos no cuidado de si, a figura do mestre, do amigo, ou seja, de outro, é sempre indispensável ao cuidado de si mesmo. O problema não está na transmissão, mas na necessidade conjunta de transformação. Todavia, se entendermos o termo disciplina conforme sua origem latina – disciplina – como a ação de instruir ou ensinar uma verdade ou conhecimento, e não considerarmos a necessidade de transformação daquele que aprende, estaremos falando de algo muito diferente do rigor necessária às práticas de si mesmo.  No mundo atual este descarte de si mesmo no acesso a verdade produz conhecimentos superficiais e é realizado não só pela escola, mas principalmente pela mídia.
Na sociedade de comunicação e informação somos bombardeados por um sem número de informações que nos afetam diretamente ao favorecer a stultitia. Muitas vezes, a escola não privilegia a análise destes dados, que tendem a ser incorporados acriticamente, potencializando um mero acúmulo de dados. Como vimos, no período de ouro, o cuidado de si deixou de ser formador e passou a ser mais crítico, tornando-se mais importante corrigir que instruir (FOUCAULT, 2004a, p. 155). Sendo assim, a recuperação de uma das aplicações do cuidado de si, remete-nos à sua função crítica e corretiva, ao proporcionar o esvaziamento de nossos hábitos nocivos, culturalmente adquiridos, inclusive dos pais e mestres mal preparados.
Por isto, as marteladas deferidas pela crítica foucauldiana nos remete ao que Veiga - Neto chama de hipercrítica, uma atitude ou êthos capaz de radicalizar a própria crítica radical, uma insatisfação inspirada em Kant e que exige do cotidiano uma constante retomada da ação (KIZILTAN, BAIN & CAÑIZARES apud VEIGA-NETO 2006b, p. 84). Dessa forma, a hipercrítica não se limita ao kantismo, pois não recorre a fundamentos ou tribunais superiores a ela mesma, seu papel é encontrar no mundo concreto as raízes das práticas e as modificações pelas quais passaram (VEIGA-NETO, 2006b, p. 84). Tal crítica está em movimento constante, é sempre provisória, questionadora de si mesma, a ponto de justificar a idéia segundo a qual Foucault faz uma filosofia da prática em que só admite o a priori histórico do acontecimento[7] − rejeitando os demais a priori clássicos: Deus, Espírito, Razão, Natureza −, portanto mantendo-se contrária às metanarrativas da Modernidade (VEIGA-NETO 2006a, p. 15). A filosofia da prática afastaria os discursos     que concebem a história com um fim previamente determinado − como no idealismo, iluminismo e no marxismo. Assim, romperia também com “a crença na totalidade, numa realidade objetiva externa a nós e acessível pelo uso de uma razão, essa mesma capaz de levar progressivamente o sujeito a um estado de autonomia ou emancipação libertária (VEIGA-NETO 2006b, p. 86) (grifo do autor). Como vimos no decorrer deste trabalho, a emancipação entendida como prática de liberdade, não se dá pela razão, ou pelo conhecimento e sim pela askésis, um trabalho singular e interno efetuado por quem cuida de si na sua relação com os outros, a um só tempo transformador e desasujeitador do sujeito.
Ao contrário do que pode parecer, esta hipercrítica não é um rompimento com a verdade e com a razão, mas é um recolocar destas soberanas usurpadoras em seu devido lugar, ou seja, em nosso mundo. Elas não são divindades intocadas, são construções humanas e questionar os seus efeitos, razões, relações e modificações compõem a prática da crítica.
O papel do professor hipercrítico não é ensinar a verdade, nem instruir sobre o que se deve fazer ou pensar, mas viver em seus atos, em sua fala, escrita e práticas, o exercício da crítica em si mesmo, inclusive do julgamento de suas próprias certezas e costumes. Como já assinalamos, esta atitude demanda constantemente pela sua provação experimental, e se a crítica é a arte de não ser governado, a qualquer preço, podemos dizer que a experiência é a transformação de nós mesmos desencadeada por uma prática de liberdade.



[1] Como exemplo, podemos citar as experiências de formação de professores e experiências de pensamento com crianças, desenvolvidos pelo professor Walter Omar Kohan (UERJ), o philodrama do professor Ricardo Sassone (UBA) e as propostas de ensino de filosofia defendidas pelo professor Sílvio Gallo (UNICAMP), e que possibilitam técnicas e práticas de liberdade visado transformações subjetivas por si mesmo.

[2] [...] “je voulais essayer de vous montrer, et de me montrer à moi-même, comment globalement l'existence, le bios, a été constituée dans la pensée grecque, et, je crois, par l'émergence et la fondation de la parrhêsia  socratique, comment l'existence et le bios a été constitué comme un objet esthétique, comme objet d'élaboration et de perception esthétique, Le bios comme une œuvre belle. Et je crois qu'on a là l'ouverture d'un champ historique d'une grande richesse. Il y a, bien sûr, à faire l'histoire de la métaphysique de l'âme ; Il y a aussi à faire ce qui en est, jusqu'à un certain point, l'autre côté et aussi l'alternative, une histoire de la stylistique de l'existence, ou encore une histoire de la vie comme beauté possible “  FOUCAULT, 29/02/1984b, 1ª hora, trad. nossa.
[3][...] par rapport à la parole d'enseignement, Socrate établit une différence si vous voulez par retournement. Là où le professeur dit: je sais et écoutez-moi, Socrate va dire: je ne sais rien et si je m'occupe de vous, ce n'est pas pour vous transmettre le savoir qui vous manque, c'est pour que, comprenant que vous ne savez rien, vous appreniez par là à vous occuper de vous-même Ibidem.

[4] São três estes deslocamentos: “Inicialmente como um conceito próximo à fenomenologia existencial, a experiência como o lugar em que é necessário descobrir as significação originárias. [...] Posteriormente, através da leitura de textos literários e filosóficos (Bataille, Blanchot, Nietzsche), [Foucault] descobre outra forma de experiência.  Já não aquela que funda o sujeito, mas como forma de de-subjetivação. [...] Finalmente o conceito de experiência recebe uma elaboração propriamente foucauldiana: como forma histórica de subjetivação” (CASTRO, 2004, p. 128).


[5] Interdisciplinar: interação entre duas ou mais disciplinas, transferências de métodos de uma por outra (exemplo: associação da física com a medicina, geografia com a sociologia, arte e informática. Tendência a ansiar pela totalidade. Muitas vezes essas associações acabam por resultar em uma nova disciplina, que sintetiza as características de áreas distintas, como por exemplo, a medicina nuclear ou a geografia cultural. A prática interdisciplinar tende a reafirmar o poder da disciplina (FEITOSA, 2004, p. 96).
[6] Transdisciplinar: entre, através e além de qualquer disciplina, a prática transdisciplinar supõe não a totalidade, mas a complexidade, a diversidade e a pluralidade intrínseca a realidade... trata-se muito mais de uma atitude do que uma disciplina específica (ibidem).
[7] Conforme páginas 58 e 59.

sábado, 2 de outubro de 2010

Traduzir-se




Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.



Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir-se uma parte

na outra parte

- que é uma questão

de vida ou morte –

será arte?

Ferreira Gullar

Adriana Calcanhotto -- Traduzir-se: http://www.youtube.com/watch?v=gqU4bSMhDXM&ob=av2e

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não atem calma.


Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,



Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.



Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: “Fui eu?”

Deus sabe, porque o escreveu.


Fernando Pessoa

A cotovia e os sapos

Adaptação bem-humorada de fábula chinesa

Era uma vez uma sociedade de sapos que vivia no fundo de um poço escuro e profundo, do qual nada se via do mundo exterior. Eram governados por um enorme sapo-chefe, mas a classe de trabalhadores mais chegada ao tirano o chamava de Cardosão. Ele se dizia soberano naquele lugar e era dono de tudo que saltava ou rastejava. Todos os sapos trabalhavam para ele. Não movia uma palha. A coletividade de sapos era obrigada a trabalhar naquele ambiente fétido e úmido para encontrar no lodo vermes e insetos para engordar mais ainda o sapo Cardosão.



De vez em quando vinha uma cotovia excêntrica, chamada Ética, que voava dentro do poço e contava para os sapos as maravilhas que vira em suas viagens pelo imenso mundo lá fora. Falava do sol, da lua e das estrelas, das montanhas altaneiras, dos vales férteis e dos vastos mares, e ainda da delícia de explorar o espaço infinito.

Sempre que a cotovia chegava o sapo Cardosão recomendava aos sapos trabalhadores que ouvissem atentamente tudo o que aquele pássaro amalucado tinha para contar. O sapo Cardosão, que era meio surdo e de cultura duvidosa, nunca sabia direito o que a cotovia estava dizendo e falava para os trabalhadores que a cotovia se referia "à terra feliz para onde vão todos os sapos bons..."

Uma parte dos sapos trabalhadores acreditava no que o sapo Cardosão dizia e ficava cética em relação ao que a cotovia falava. Outra parte, menos expressiva, começava a ficar encantada.

Entretanto, havia entre eles um sapo-político (um tal de Inácio da Selva), que formulara uma idéia nova e interessante a respeito da cotovia. "O que a cotovia diz não é exatamente uma mentira", dizia ele. "Nem é loucura. Na verdade, ao falar dessa maneira esquisita, ela está se referindo ao lugar maravilhoso em que poderíamos transformar esse poço, se quiséssemos. Quando ela fala do sol e da lua, está se referindo às magníficas formas de iluminação moderna que poderíamos adotar para eliminar as trevas em que vivemos. Quando canta céus altos, refere-se à saudável ventilação de que deveríamos gozar, ao invés dos ares úmidos e fétidos a que nos acostumamos. E o mais importante: quando a cotovia enaltece o vôo altivo e livre entre as estrelas, refere-se à liberdade que todos teremos quando nos livrarmos da opressão do sapo-chefe. Vêem? Não devemos desdenhar o pássaro. Em lugar disso, ele deve ser apreciado e louvado por nos proporcionar uma inspiração que nos livra do desespero".

O sapo Inácio virou a cabeça dos sapos trabalhadores. Eles agora passaram a olhar a cotovia com outros olhos. Não demorou muito e fizeram a revolução (elas sempre acabam vindo). Os sapos trabalhadores pintaram a imagem da cotovia em seus estandartes e marcharam para as barricadas, fazendo o máximo que podiam para, com o seu coaxar, imitar o belo canto daquele amável pássaro. O sapo-chefe Cardosão foi derrubado de seu poder. O poço escuro e úmido tornou-se magnificamente iluminado e ventilado, transformado em um lugar muito melhor para viver. Além disso, os sapos experimentaram um novo e gratificante lazer, acompanhado de muitas delícias dos sentidos - justamente como o sapo-político havia previsto.

Mas a cotovia continuou fazendo visitas ao poço, contando histórias do sol, da lua, das estrelas, de montanhas, vales e oceanos e esplêndidas aventuras vividas nos céus. O sapo-político mais uma vez entra em ação: "Quem sabe esse pássaro não seja mesmo maluco? Já não temos necessidade dessas canções enigmáticas. E, seja como for, é muito cansativo ter de escutar fantasias quando já perderam sua relevância social".

Vai daí, um dia a comunidade de sapos conseguiu capturar a cotovia. Empalharam-na e colocaram-na no recém-construído Museu Cívico da Ética em lugar de honra...

terça-feira, 28 de setembro de 2010

A Democracia Ameaçada

O texto postado abaixo é de autoria de Maurício Abdalla, um de meus ex-professores, com quem tive a sorte de estudar durante a graduação em Filosofia na UFES.

***

A DEMOCRACIA AMEAÇADA: DETURPAÇÃO E CORRUPÇÃO DOS MECANISMOS JURÍDICOS DE EXERCÍCIO DO PODER

Maurício Abdalla *

Publicado em: Revista Redes. Vitória: IFTAV/Unisales, Ano II, n. 3, jul/dez 2004.





Qualquer pessoa que tenha um mínimo de acesso aos meios de comunicação percebe que o sistema político representativo brasileiro sofre de sérios problemas. A onda de corrupção que assola o país, embora não seja nova, tem recebido um grande destaque na imprensa nacional. Não se pode negar que a mídia desempenhou um importante papel de denúncia que contribuiu decisivamente para desbaratar quadrilhas que agiam (e agem) através de representantes eleitos pelo povo para os poderes Legislativo e Executivo e de juízes e desembargadores que ocupam o Judiciário, como, por exemplo, nos casos mais gritantes do Acre e do Espírito Santo. Sem o destaque e o acompanhamento dos meios de comunicação nacionais, dificilmente o combate ao crime organizado e a seu braço político teria os resultados que temos constatado.

No entanto, falta à imprensa brasileira uma maior capacidade de análise que nos leve a uma reflexão sobre as verdadeiras causas e as principais conseqüências desses fatos. Não estamos diante apenas de um fenômeno que encerra em si mesmo o seu sentido. Dois aspectos desta realidade são merecedores de especial atenção: 1) os poderes da República estão eivados de corrupção e as instituições políticas não cumprem devidamente o seu papel; 2) os representantes desses poderes são conduzidos e reconduzidos a seus postos através do voto popular democrático; ou seja, são portadores de legitimidade dentro do ordenamento jurídico das democracias modernas. Estes aspectos exigem de nós uma reflexão mais profunda, que analise os fundamentos de nossa democracia e o significado do exercício do poder na sociedade moderna. Engana-se quem enxerga nesses episódios apenas um problema ético. Embora, sem nenhuma dúvida, o comportamento ético de governantes, parlamentares e juízes faça irromper o necessário debate sobre a ética na política, creio que a realidade esteja exigindo de nós uma reflexão sobre a essência do exercício da soberania nas democracias atuais. Estamos diante de fatos que possuem uma significação política muito forte, que não podem ser resumidos a uma questão de postura individual e de moralidade. Trata-se de uma grave corrosão no cerne da ordem jurídica que mantém a sociedade equilibrada dentro de certas regras fundamentais da política moderna.

Neste texto, proponho algumas breves reflexões que, acredito, podem trazer ao debate questões políticas de fundo, que dão sentido à degeneração da prática política brasileira e que apontam para suas graves conseqüências.

OS FUNDAMENTOS DA DEMOCRACIA MODERNA E OS MECANISMOS DE EXERCÍCIO E CONTROLE DO PODER

A característica principal do período histórico conhecido como Renascimento, viveiro da civilização moderna, foi a colocação do ser humano como agente principal de seu destino. Não mais Deus, mas o próprio homem era o responsável pela condução de seus negócios, pelo conhecimento do mundo e pela gestão da sociedade. O poder não mais era concebido como algo que habitava os céus, mas como algo que derivava da vontade livre dos humanos vivendo em coletividade. Era ao ser humano, e não a uma instituição que encarnasse a soberania divina, que cabia a propriedade do poder e a responsabilidade de gerir a sociedade. De cada um, dentro de uma totalidade, emanava o poder, sendo portanto cada cidadão uma unidade que compunha o divisor do poder dividendo.

Uma vez rejeitada a legitimação divina do poder, a tarefa que cabia à modernidade era elaborar mecanismos conceituais e práticos que legitimassem o exercício da soberania necessária para a administração do cotidiano da sociedade. Se a admissão de um poder soberano no período medieval nutria-se de sua acreditada origem divina, a modernidade foi marcada por assentar na vontade humana a fonte desse poder. Ou seja, um poder transcendente deu lugar à imanência da soberania. Restava, então, buscar uma ordem jurídica que tornasse aceitável tal exercício do poder soberano, sem que ele se dissolvesse nas vontades individuais – fato que conduziria ao caos e à impossibilidade de governança da sociedade – e que submetesse tais vontades a uma “vontade geral”.

De forma diversificada, aceitou-se que o Estado fosse concebido como a instituição que encarna o poder imanente e gere a sociedade tendo como conceito orientador a “vontade geral”, seja lá como fosse interpretado este conceito. E foi justamente a percepção dos riscos advindos de interpretações enviesadas desta “vontade geral” e a possibilidade (sempre à espreita) de que o Estado se destacasse de sua fonte de poder originária – abrindo brechas a tiranias, oligarquias e abusos do poder – que levou teóricos e agentes sociais a propor mecanismos legais que equilibrassem o exercício do poder e o mantivessem em harmonia com a “vontade geral”. Os principais mecanismos criados e que se incorporaram às democracias modernas foram o sufrágio universal e a tripartição do poder.

Segundo o primeiro, aos cidadãos é conferida a prerrogativa de escolher livremente, pelo voto, aqueles que irão ocupar temporariamente a estrutura do Estado e exercer a soberania. É uma forma de transmissão consciente e temporária de poder. Na história moderna, as primeiras experiências de sufrágio não universalizavam o direito de voto, restringindo-o aos homens que possuíssem bens. Com o tempo ele foi se universalizando, desvinculando-se da propriedade e incluindo mulheres e analfabetos. É através do sufrágio que os cidadãos delegam a alguns a soberania que lhes pertence de direito. Ou seja, sendo, de direito, proprietárias do poder, as pessoas escolhem aqueles que, de fato, o exercerão. Na base deste mecanismo encontra-se a idéia (nem sempre evocada) de subordinação dos eleitos aos eleitores, na forma da concessão de procuração para ação em nome de outrem.

O segundo mecanismo, ou seja, a tripartição do poder segundo suas formas de exercício – a saber, administração, legislação, fiscalização e julgamento – evita que o exercício do poder soberano em todas suas atribuições descambem em hipertrofia do Estado e na absolutização do poder. Segundo Montesquieu, o poder precisa ter freios e só um poder é capaz de deter um poder, donde a necessidade da separação dos poderes em três, autônomos, mas necessitando conviver em harmonia. Esses poderes aparecem sob a forma de Poder Executivo (administração), Legislativo (legislação e fiscalização) e Judiciário (julgamento).

O processo de formação das democracias modernas foi bastante tumultuado, pelo fato de ter sido uma invenção jurídica e política desenvolvida sobre uma base econômica caracterizada pela separação da sociedade em classes. Na conformação social das economias capitalistas, o conceito de “vontade geral” esbarra com os interesses divergentes das classes sociais. Resulta daí que o Estado se torna um alvo de disputa para que a soberania seja exercida em nome de uma classe social e de seus interesses. Historicamente – mesmo considerando as contradições que não permitem análises uniformes a respeito das instituições sociais – o controle do Estado foi exercido pela burguesia, permitindo que a sociedade fosse conduzida de acordo com os interesses do sistema capitalista. Ademais, as elites de diversos países do mundo e os gestores do capitalismo mundial romperam inúmeras vezes com as regras da democracia sempre que viram seus interesses ameaçados quando o povo quis exercer o poder que lhe pertencia de direito. O golpe militar de 64 é um entre miríades de exemplos que poderíamos evocar. Para manter o poder imanente sob sua tutela, as classes dominantes se apropriaram do Estado através de golpes e intervenções militares, principalmente em países do Terceiro Mundo. Isto mostra um fato curioso e paradoxal: a burguesia, que foi a principal protagonista da criação da política moderna, tornou-se, historicamente, o maior obstáculo para que este ideal se concretizasse em todas as suas conseqüências.

Mas, mesmo com todas as suas possíveis limitações e a ausência de dispositivos que possibilitem um controle direto efetivo por parte dos cidadãos, os mecanismos citados anteriormente permitem que a disputa pelo Estado seja vencida por grupos sociais com interesses distintos das elites econômicas, como atesta a história recente das administrações municipais no Brasil e a última eleição presidencial – para não citar outros casos na América Latina. Embora possa não representar uma mudança definitiva de eixo do poder – por não afetar direta e imediatamente a estrutura econômica da sociedade – este fato mostra a possibilidade de que os cidadãos participem do exercício de sua soberania, concretizando os ideais supremos do espírito moderno de um poder que “emane do povo” e que não lhe seja estranho. Muitos deram sua vida para isso e, ainda hoje, busca-se aperfeiçoar e radicalizar os mecanismos de exercício do poder soberano da população.

Por terem sido criados para tornar o poder de fato imanente à vontade da população, controlando os riscos de apropriação oligárquica da soberania, de criação de um poder contra o povo e de concentração de poder, estes mecanismos possuem uma grande importância no atual estágio da democracia moderna. Sua deturpação e a corrupção de seu uso são deturpação e corrupção da própria essência da nossa democracia e o desmoronamento do ordenamento jurídico que a torna possível. A falência destes mecanismos anula o sentido de sua instituição e despreza séculos de construção de um poder imanente a todos os cidadãos.

Deturpação e corrupção dos mecanismos de controle do poder imanente são os conceitos que nos permitem melhor analisar a realidade política brasileira, ao mesmo tempo em que nos possibilita ter uma maior compreensão dos riscos que certos fenômenos prenunciam.

O SUFRÁGIO UNIVERSAL



Deturpação

O processo eleitoral deveria ser o momento em que todos os cidadãos escolheriam, livre e conscientemente, os que melhores condições teriam para os representar no exercício (de fato) do poder que lhes pertence (de direito). A deturpação deste processo manifesta-se nos seguintes fenômenos (todos eles patentes na realidade política brasileira): a) desconhecimento, por grande parte da população, dos fundamentos do sufrágio universal e da função dos eleitos; b) “futebolização” da política; c) preponderância do marketing; e d) o sistema eleitoral proporcional enviesado, com voto de legenda, mas campanhas de candidatos.

a) Não é preciso uma pesquisa de opinião rigorosa para afirmamos com relativo grau de certeza que grande parte dos eleitores desconhece o sentido das eleições e a função que será exercida pelos eleitos. Em parte, este problema tem sido minimizado pelas campanhas realizadas pelo poder público e entidades da sociedade civil, inclusive os meios de comunicação. Mas como a questão ultrapassa um simples lampejo de sentimento cívico e exige maior reflexão e engajamento, o problema, como um todo, ainda permanece.

Por não perceber o sentido das eleições, uma parte da população tem manifestado insatisfação com a obrigatoriedade do voto e defendido o abstencionismo ou o voto nulo. A defesa do voto facultativo, em minha opinião, é dividida entre os que não entendem para que votam e os que interpretam a democracia sob a ótica individualista da vontade pessoal isenta de obrigações sociais. O direito de votar, conquistado com muita luta pela sociedade, passa a ser visto como um fardo e mais uma obrigação sem sentido imposta pela burocracia estatal, como tantas outras às quais são submetidos os cidadãos nos cartórios e repartições públicas.

Quando o voto se torna uma mera obrigação, perde-se o interesse pela dinâmica total da política, da qual o sufrágio é apenas um momento. Sem esta vinculação do fenômeno “eleição” com o processo político que lhe dá sentido e permite sua compreensão, o mecanismo de escolha é deturpado.

Além disso, a confusão sobre os papéis de parlamentares e mandatários do executivo leva uma parcela da população a votar em candidatos ao legislativo esperando uma ação que é atribuição exclusiva do executivo. Por isso, muitos votam em deputados e vereadores esperando melhorias no município ou no bairro, calçamento de ruas, construção de posto médico e de praças, etc., não se importando com o que ele faz no exercício legal de seu mandato. É a partir dos benefícios “conseguidos” por parlamentares, e não de sua atuação como legislador e fiscalizador, que muitas pessoas os avaliam. Muitas obras e muito assistencialismo garantem a reeleição.

Há ainda o problema daqueles que votam como se estivessem escolhendo a diretoria de uma empresa ou de um clube, sem se atentar que o poder exercido e os recursos geridos são de sua propriedade e não de uma instituição estranha. Por isso a população não manifesta, diante de um deputado que rouba os cofres públicos, a mesma reação ou sentimento que costuma mostrar diante de ladrões comuns ou assaltantes de rua: estes últimos podem até ser linchados, enquanto os primeiros acabam virando uma piada passageira e, muitas vezes, conseguem a reeleição. O exercício do poder parece ter perdido o seu vínculo com o cotidiano dos cidadãos e se tornado estranho a ele.

b) O Brasil, realmente, é o país do futebol. A cultura brasileira está impregnada pela dinâmica dessa atividade esportiva. Não torcer por um time, hoje, é quase o equivalente a não ter religião na Idade Média. Não saber jogar futebol é até motivo de preconceito e exclusão entre crianças do sexo masculino, o mesmo acontecendo (de forma bem mais branda) com adultos que não acompanham os campeonatos e não sabem a escalação dos times.

A lógica do comportamento social em disputas futebolísticas tende a permear quase todas as instâncias de manifestação do senso comum. Tal lógica, baseada no sentimento de torcida e no fato de que o efeito de uma vitória ou derrota é meramente subjetivo, sem conseqüências na vida cotidiana, é transferida para outros campos de fenômenos sociais, como a religião e a política – por isso, tal como o futebol, estes dois também “não se discutem”. No âmbito religioso, a pertença a uma determinada denominação é semelhante, em certos casos, à torcida por um time. Não é de se estranhar, portanto, o fato de que as discussões políticas, principalmente em tempos de eleições, ficam impregnadas da lógica do torcedor.

O sentimento de torcida é manifestado por aqueles que, embora não dando a mínima para a política em seu sentido mais amplo e nos períodos não eleitorais, empunham bandeiras, vestem camisas, e colam adesivos em seus carros em tempos de eleição – quase sempre cedidos por candidatos com uma pequena colaboração a mais. Esses vão aos comícios (que na verdade são shows musicais) e saem “torcendo” para o candidato e, nas ruas e bares, não aceitam argumentações acerca da política geral e safam-se com o velho bordão de que política, como o futebol, não se discute. De fato, não há racionalidade que convença um torcedor sobre os defeitos de seu time ou sobre a superioridade do outro.

A vitória do candidato, como a vitória de um time, é vista apenas como uma vitória do ego do torcedor, com efeitos apenas subjetivos. Quem concebe a política dessa forma acredita que o seu cotidiano não sofrerá absolutamente nenhuma alteração, seja quem for o “vencedor” das eleições. A diferença está em que no jogo eleitoral você pode trocar de “torcida” a cada eleição a fim de não “perder o voto” – atitude inadmissível em um bom torcedor de futebol.

c) A preponderância do marketing sobre os conteúdos está, de certa forma, relacionada com os fatos acima, ao mesmo tempo em que se relaciona com um comportamento social que coloca o consumo acima da necessidade. A sociedade atual compra a imagem e não o produto. Não o teor vitamínico do biscoito, mas a qualidade de sua marca e de sua propaganda; não a função do automóvel, mas a fantasia prometida pela campanha publicitária; não a qualidade da marca do tênis, mas o medo de não usá-la. Tal é a forma que vêm adquirindo as campanhas eleitorais. Não o candidato mais qualificado para exercer o poder em seu nome, mas o que lhe trará a melhor imagem e despertará maiores sentimentos.

O direito imanente de exercício e controle do poder e a submissão do eleito ao eleitor são conceitos totalmente apagados nas atuais tendências do marketing político irresponsável e foram substituídos por um ideal sentimental de escolha daqueles que irão “cuidar do mundo para nós”. Por isso, destacam-se imagens de candidatos mirando o além, com paisagens de retiro espiritual como fundo; valoriza-se as músicas sentimentalistas e o apelo ao religioso; caracteriza-se o candidato como bom pai e bom marido, etc. Reflexões acerca da política e de seus fundamentos, quando há, ficam apenas como tema secundário. O pior é que se tem afirmado que esta é a forma correta e “profissionalizada” de se fazer política e que só se ganha eleição assim. Direita e esquerda vêm, infelizmente, se unindo nesta tendência deturpadora do processo eleitoral.

d) Um último aspecto, de ordem mais técnica, da deturpação dos mecanismos de exercício e controle do poder é o sistema eleitoral proporcional brasileiro que, embora contabilize os votos por legenda, individualiza a campanha por candidatos e não proíbe a troca de partidos. As vagas no parlamento são definidas basicamente por um cálculo que divide o número de votos válidos pelo número de cadeiras a serem preenchidas. A soma de um determinado número de votos é o que garante o preenchimento de cada uma dessas vagas. Para exemplificar, grosso modo, é o seguinte: se um parlamento composto por trinta cadeiras for escolhido por um universo de 300 mil eleitores (supondo que nenhum anulará o voto) cada vaga, para ser preenchida, necessitará da soma de 10 mil votos.

Mas esta contagem não é feita pelos votos recebidos pelos candidatos, mas pela soma de todos os votos recebidos pelo partido ou coligação. Ou seja, ao votar, o eleitor confere uma procuração para o exercício do poder ao partido ou coligação e não ao candidato. Se uma coligação consegue os 10 mil votos ela tem direito a uma vaga, que será ocupada pelo seu candidato mais votado, não importando o número de votos individuais que ele obteve. E assim sucessivamente, de acordo com os múltiplos do número básico exigido para a ocupação de uma vaga. Se a coligação obtiver um número suficiente de votos para eleger quatro, cinco, ou seis deputados, eles serão definidos pela ordem de votação, mesmo que os últimos da fila tenham obtido apenas algumas dezenas de votos.

No entanto (e aí é que está o problema), as campanhas são individualizadas. Os candidatos é que se destacam, são suas imagens que predominam nas campanhas e poucos sabem a quais partidos eles pertencem ou com quem estão coligados, o que gera o dito já popularizado de que “o que importa não é o partido, e sim o candidato”. O sistema é um, mas o processo real é outro. E, depois de eleitos, eles podem trocar de partido e ingressar em um outro que não obteve votos suficientes para eleger um parlamentar.

Além do problema de ordem lógica que esta contradição entre o sistema e a prática real produz, existe um outro mais grave. Sem o conhecimento de que está votando na legenda, o eleitor pode, votando em quem quer, eleger indiretamente quem não quer. Sendo a campanha personalizada, o eleitor pode votar em um representante de sua categoria, no seu vizinho, no seu parente, numa liderança comunitária, etc., achando que está transferindo a essa pessoa (e só a ela) o direito de exercer o poder em seu nome. Mas, não se atentando para os outros candidatos mais fortes da coligação, geralmente nomes tradicionais da política ou pessoas com mais dinheiro para gastar na campanha, ele está transferindo a esses outros a possibilidade de representá-lo no poder. Se estes nomes tradicionais ou pessoas com mais dinheiro forem vinculados ao crime organizado, à corrupção, ao narcotráfico ou representantes de grupos econômicos poderosos, o eleitor, sem o saber, ajudou a colocá-los no poder. É, também, por isso que muitas vezes as Assembléias Legislativas de alguns estados se assemelham muito mais a um covil do que a um parlamento.

Como se pode falar de um mecanismo de escolha livre e consciente dos representantes e de participação dos cidadãos no exercício do poder com distorções como essas apontadas acima?

Corrupção

Utilizo aqui o termo corrupção na sua acepção mais comum, no seu sentido moral, relacionado aos atos ilícitos e aos meios de se burlar normas estabelecidas ou se romper com acordos tácitos ou explícitos. Neste sentido, o mecanismo do sufrágio universal sofre uma deterioração que compromete a sua essência. Isso está manifestado nos seguintes fenômenos: a) compra de votos; b) distribuição de cargos públicos; e d) abuso do poder político ou de influência.

a) Na nossa sociedade, dois fenômenos confluem para que o voto se torne mercadoria de contrabando: a já citada falta de clareza sobre o sentido da eleição e a pobreza, somada à falta de perspectiva de melhoria de vida. Como já foi visto acima, uma boa parte da população não vê no processo eleitoral o sentido que ele possui. Em virtude da própria prática política brasileira, o momento eleitoral é visto, muitas vezes, como uma disputa de pessoas de mau caráter para ocupar cargos que lhes renderão dinheiro e poder pessoal, mas que para isso dependem do voto do cidadão. Cria-se por isso uma “demanda” por votos. Numa sociedade em que tudo vira mercadoria, a essa demanda corresponde uma “oferta” de votos. Desvinculado de seu sentido original, o valor do voto passa a ser econômico e não político. Ele se torna uma mercadoria e não um direito.

Em situações de pobreza e falta de perspectiva, tendo nas mãos uma “mercadoria” que pode lhes valer uma certa quantia a cada dois anos (em dinheiro, alimentos ou objetos), muitos fazem da eleição uma feira e ficam sempre aguardando um pagamento pelo seu “produto”.

Uma boa parte dos políticos atuais se aproveita desta situação e se elege única e exclusivamente pela quantidade de dinheiro que dispõe para arrematar lotes imensos de votos nos grotões e periferias, onde, em função da necessidade, o voto pode ser comprado a preços módicos.

b) Mas o problema não é exclusivo da parcela mais pobre da população ou de pessoas sem instrução oficial, como se costuma dizer. Uma boa parte da classe média também é aliciada por candidatos corruptos, contribuindo para que a eleição deixe de ser um processo de transferência do poder. A diferença é que os setores médios da sociedade não põem à venda seu voto por quinquilharia. Geralmente é por emprego ou melhor colocação em cargos públicos. Os principais fantasmas que assombram a classe média são o desemprego e a falta de prestígio. Por isso, não é pouca a quantidade de votos trocados por uma promoção, um cargo comissionado, um emprego para alguém da família, ou a contratação de serviços temporários. Muitas vezes isso passa a ser a razão última da escolha de um candidato, bem distante, portanto, do que deveria ser uma eleição em sua concepção original.

c) O abuso de poder se manifesta no aliciamento do voto através de ameaças por parte de quem já ocupa o poder e quer manter-se nele ou de quem quer ocupá-lo e possui influência junto aos que o exercem. Transferências, destituição de postos ocupados (chefias de setor, superintendências, diretorias de escolas, etc.), perseguições políticas, cancelamento de serviços contratados e outras formas de intimidação já se tornaram tão corriqueiras na política atual que a população fala delas à luz do dia, como se fossem manifestações de regras legítimas do jogo eleitoral.

Esta situação de corrupção também tira do processo eleitoral a sua legitimidade e o desliga de sua fonte de sentido. O poder fica sem controle, pois apossa-se dele quem quer, desde que tenha as condições financeiras e de poder para isso. Há uma inversão do processo: ao invés de ser uma concessão temporária para o exercício do poder, o voto passa a ser um objeto de disputa para quem deseja gozar dos benefícios da ocupação do Estado. Com isso, é impossível afirmar que, na situação real, o poder “emana” do povo, mesmo que, de direito, isso seja verdadeiro.

A TRIPARTIÇÃO DO PODER

Devo esclarecer que farei aqui uma exclusão deliberada da análise do Poder Judiciário, em virtude de que sua complexidade exige uma abordagem mais ampla, incluindo uma análise dos fundamentos do direito moderno. Para a finalidade do presente texto, basta-nos refletir sobre o Legislativo e o Executivo em sua relação atual.

Deturpação

A finalidade da separação dos poderes de acordo com suas atribuições é a de criar dispositivos moderadores do exercício do poder. A independência dos três poderes é um fator fundamental para garantir este equilíbrio, ao passo que a harmonia entre eles é o que garante a governabilidade da sociedade. Toda ditadura tem como características a supressão dos poderes dos parlamentos e tribunais e a concentração dos poderes no Executivo. Mas a ditadura não é a única ameaça à democracia. A concentração de poder através do controle do legislativo (e muitas vezes do judiciário) e a deturpação dos fundamentos da tripartição do poder também suprimem os objetivos do poder democrático, mesmo aparentemente mantendo suas regras legais.

A deturpação desse mecanismo ocorre nos seguintes fenômenos: a) submissão do Poder Legislativo ao Executivo; b) utilização dos parlamentos como instrumentos de chantagem ao Executivo; c) hipertrofia das atribuições legislativas do Executivo e atrofia da função legislativa dos parlamentos; e d) ação “clientelista” do Legislativo.

a) No sistema presidencialista de governo, em que o Poder Executivo é exercido pela presidência da república – que acumula as atribuições de chefia de Estado e chefia de Governo –, é natural que a importância maior do exercício do poder tenda a se concentrar no Executivo, lembrando que este se encontra separado do parlamento. Decorre daí uma certa concepção que atribui ao Legislativo um papel coadjuvante no exercício do poder. Some-se a isso os vinte anos de ditadura aos quais foi submetido o governo brasileiro, com um poder totalmente concentrado no Executivo, para termos como resultado uma cultura política que não consegue enxergar a necessária divisão dos poderes.

Se quisermos ir mais longe, é preciso acrescentar que esta compreensão que relega o papel do Legislativo decorre também do fato de que, no Brasil, a criação de parlamentos e a divisão de poderes conforme o sistema republicano não foram uma conquista da sociedade, mas uma transposição do modelo europeu por mera conveniência das elites. As mudanças na ordem política brasileira sempre vieram “de cima”, não fixando raízes na cultura política do país por não terem sido resultado de lutas populares ou demandas nacionais. No período Imperial, embora existindo um parlamento, o poder concentrava-se no imperador, cujo poder Moderador lhe concedia, na prática, poderes absolutos. A proclamação da República brasileira foi uma transição realizada pelas elites, através de um golpe militar, sem o envolvimento do povo. Na Europa e nos EUA, de modo diverso, o aumento do poder dos parlamentos e a criação de repúblicas foram resultados de lutas e revoluções, marcando a cultura política da sociedade.

Por isso, temos, por um lado, um conjunto de cidadãos que não se importa muito com o papel do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores e concentram sua atenção apenas no presidente, governadores e prefeitos; e, por outro, parlamentares eleitos que não se sentem pressionados a cumprir a sua função constitucional, por não se sentirem representantes do povo para as atribuições de depositários da soberania popular e de poder equilibrador. Do nível nacional ao municipal, a correlação de forças nos parlamentos brasileiros e a formação de blocos governistas fortes tem feito o Legislativo pender, de modo geral, para um papel referendário das proposições do Poder Executivo. Na maior parte dos casos, visto possuir o Executivo o poder de realizar obras, direcionar verbas, nomear cargos, etc., a formação de uma base de apoio ao governo não tem sido tarefa muito difícil e o papel dos parlamentos muitas vezes assumem um caráter de total subserviência à ação do Executivo.

Depreende-se disso que a necessária autonomia entre esses dois poderes é suprimida, deturpando o sentido da tripartição do poder como forma de controlá-lo.

b) Por outro lado, os parlamentares também têm dado mostras de que sabem usar o seu poder. Mas, infelizmente, este fenômeno tem ocorrido como uma forma de se conseguir benefícios particulares ou de se fazer disputa ideológica ou partidária. Conscientes de que podem bloquear ações pontuais do governo ou mesmo inviabilizá-lo, uma parte dos parlamentares brasileiros, em todos os níveis, tem desenvolvido uma condenável tradição de submeter o Executivo a chantagens. Exige-se, para conceder voto favorável a uma proposta governamental, dinheiro, obras, cargos, maior poder de influência nas secretarias ou ministérios, apoio político em período eleitoral ou encobrimento de possíveis atitudes ilícitas cometidas.

Isso ocorre principalmente quando o governo se vê envolvido em situações de corrupção ou enfrenta forte insatisfação popular. Para dar-lhe garantia de governabilidade, blocos majoritários no parlamento se comprometem a sustentá-lo politicamente, mas exigem em troca o controle do poder (ou de parte dele). A negativa do Executivo em se submeter a essa proposta pode ter como reação uma cassação do mandato ou uma ferrenha oposição que se somará ao clima de denúncias ou insatisfação popular que porventura ronde o governo.

Há situações, também, em que o programa de governo do mandatário do Executivo não se coaduna com as idéias dos partidos que formam a maioria do Legislativo. Neste caso, o sucesso das políticas públicas adotadas pelo partido do governo pode representar o fracasso eleitoral dos partidos opositores. Nessas situações, muitas vezes os parlamentos (principalmente câmaras de vereadores e assembléias legislativas) utilizam o seu poder para ou inviabilizar o governo ou para “empurrá-lo” para um outro tipo de ação. Aqui, interesses partidários e eleitorais são o que movem a ação parlamentar e não a autonomia essencial e o papel fiscalizador do Legislativo. Mais uma vez, deturpa-se o sentido da tripartição do poder.

c) O Poder Executivo também possui a prerrogativa de elaborar leis e até, em alguns casos, de legislar diretamente, como no caso das medidas provisórias (MP). Mas esta deveria ser uma atribuição acessória e não o seu papel essencial. No entanto, a história recente do Brasil, principalmente com os presidentes José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, o Executivo Nacional abusou dessa prerrogativa e governou sustentado em centenas de MP’s, definindo mudanças substanciais nos rumos da economia do país sem a necessária consulta ao Congresso Nacional. A atual moeda brasileira (o Real), resultado de uma política macroeconômica com conseqüências enormes para a vida da sociedade, foi criada por uma MP e permaneceu como tal por alguns anos, sendo reeditada inúmeras vezes. O abuso das MP’s desconsidera o papel do Congresso Nacional e concentra o poder de legislar nas mãos do Executivo, ferindo o princípio da tripartição do poder.

Há muitos casos de municípios (principalmente os menores espalhados pelo interior do Brasil) em que as câmaras de vereadores de fato não legislam sobre assuntos importantes da cidade, limitando-se a votar matérias do Executivo em um mero ritual burocrático. O vereador passa a ser uma espécie de representante de um bairro, distrito ou mesmo de pessoas junto à prefeitura e, no seu expediente na câmara, ocupa-se em aprovar nomes de logradouros, a fazer indicações de obras, ou conceder títulos de cidadão honorário, além de votar as mensagens da prefeitura. Ou seja, a tarefa legislativa, fundamento da existência dos parlamentos, passa a ser de responsabilidade do Executivo e deixa de ser prioridade para alguns níveis do Legislativo.

Com isso, o Executivo assume, de fato, as atribuições de legislar e executar, embora legalmente ainda cumpra o ritual da divisão dos poderes. Tanto no caso do abuso das MP’s como nos casos dos municípios, há uma concentração de poderes no Executivo, deturpando a lógica do poder tripartido.

d) Com essas deturpações acima, uma outra passa a ser a rotina normal dos parlamentos: o clientelismo. As casas legislativas, principalmente as municipais e estaduais, só perdem em peregrinação de necessitados talvez para centros religiosos tradicionais. O dia a dia dos gabinetes é repleto de pedidos de emprego, caixões, promoção em cargos públicos, cadeiras de rodas, vagas em hospitais, atendimento em postos de saúde, material de construção, isenções de multas e até vagas em escolas e universidades públicas.

Não é raro aparecerem alguns deputados justificando o aumento de seus próprios salários pela quantidade de assistencialismo que têm de fazer, como se isso fosse sua atribuição constitucional. Quem já esteve presente em casas legislativas pôde constatar a quantidade de pessoas que transitam entre os gabinetes. Excetuando-se os lobistas, a maioria é formada por cidadãos desamparados que acreditam conseguir alguma ajuda dirigindo-se àquele local. Parlamentares oferecem desde cursos profissionalizantes até indicação para atendimento em postos de saúde.

Seria de se esperar que o atendimento a estas carências fosse assumido pelo Poder Executivo. Porém, diante do abandono ao qual se encontra submetida a população, cria-se um ambiente propício para a prática do clientelismo feita por parlamentares com o dinheiro público ou com quantias adquiridas ilicitamente. O que a população, diante disso, espera de um deputado ou vereador? Certamente, fica difícil dizer que se espera desses representantes uma ação fiscalizadora e legisladora, conforme preceitua a Constituição.

O fundamento da tripartição do poder se perde diante da prática política brasileira. Não se pode dizer que este mecanismo consiga, realmente, fazer com que um poder detenha o outro, evitando a concentração e os abusos e garantindo o equilíbrio essencial da democracia.

Corrupção

A corrupção no exercício do poder tripartido é evidenciada em fenômenos muito comuns na política brasileira. Os mais evidentes e graves são: a) sujeição do exercício do mandato ao recebimento de pagamentos; b) utilização do mandato parlamentar para garantir a impunidade; e c) criação de uma estrutura política de suporte e encobrimento das ações do crime organizado.

a) A forma mais comum de corrupção que grassa pelo poder público brasileiro é a utilização dos mandatos para enriquecimento pessoal. Isso acontece quando o mandatário do Executivo ou o parlamentar atuam sem comprometimento com a sociedade que o elegeu para representá-la no poder. Alguns colocam o mandato à disposição dos interesses dos grupos ou empresas que ofereçam somas mais gordas para suas contas pessoais. A prática do lobby institucionalizou-se no Brasil e, em grande parte dos casos, o poder de pressão é medido em cifrões. São bastante comuns as denúncias de representantes eleitos que governaram em benefício de empresas privadas ou de parlamentares que receberam dinheiro ou outro tipo de pagamento para votar a favor de determinado projeto.

Essa prática de corrupção rompe o vínculo procuratório do eleito com o eleitor, desfazendo o sentido da representação política. O poder não é exercido por quem o possui de direito, mas por quem pode pagar por ele.

b) O instituto da imunidade parlamentar tinha como fundamento a preservação da liberdade dos representantes do povo no exercício de sua atividade constitucional. Para evitar-se a arbitrariedade e as punições por opiniões expressas no cumprimento do mandato, principalmente em estados de exceção, os parlamentares gozavam da prerrogativa da imunidade e não poderiam ser processados pela justiça sem a autorização da casa legislativa a que pertencia.

A imunidade parlamentar no Brasil era por demais ampla e estendia-se também à prática de crimes comuns. Embora tenha sido eliminada pelo Congresso Nacional em 2002, a existência desta prerrogativa fez com que o Poder Legislativo fosse visto como uma espécie de abrigo inviolável por todo tipo de criminoso e desejado por todos aqueles cuja prática criminosa legou condições financeiras e influências sociais para uma vitória eleitoral. Tornar-se senador, deputado ou vereador era a certeza de fugir da ação do Judiciário e garantir a impunidade de seus crimes.

A presença de criminosos e contraventores em um poder importante no sistema republicano corrompe totalmente os seus fundamentos e destrói o seu caráter de representação, maculando o cerne do ordenamento jurídico do exercício do poder.

c) As vantagens que o exercício do poder proporciona podem servir também para a criação de uma estrutura política e logística para sustentar e fortalecer o crime organizado. O que dá o caráter de organização à prática do crime é justamente a sua infiltração nos três poderes, além da criação de uma hierarquia e a montagem de uma estrutura financeira e armada.

Todas as formas de combate, repressão e punição ao crime são atribuições exclusivas do Estado, que possui o monopólio da ação coercitiva na ordem jurídica moderna, por ter a responsabilidade de manter a estabilidade social dentro de um conjunto de leis. Quando o aparelho estatal passa a ser ocupado pelos próprios criminosos e estes passam a deter o poder soberano do povo, ao invés de o Estado ser o mantenedor da ordem jurídica ele se torna a força maior de deterioração das regras do direito. Quando isso ocorre, a sociedade não mais pode contar com o Estado para manter os fundamentos da democracia e da imanência do poder. É a total corrupção das instituições democráticas e a dissolução da ordem jurídica – uma ameaça que a sociedade precisa enfrentar.

CONSEQÜÊNCIAS

A distância que separa os fundamentos da democracia moderna (e os mecanismos que garantem a sua expressão) da prática real do exercício do poder no Brasil nos dá a idéia de quão afastados estamos de viver em uma democracia real. Além disso, toda a invenção política da modernidade – que representou avanços contínuos na ordem social e um amadurecimento progressivo da sociedade (ainda em andamento) – é jogada por terra. O direito é dissolvido, com a conseqüente ameaça da criação de uma sociedade onde vige apenas a lei do mais forte.

O recente esforço de combate ao crime organizado tem dado resultados positivos e animadores. Mas este é apenas um aspecto da questão. Se não houver uma intensa preocupação da sociedade com a política, corremos o risco de continuar vendo, por um longo tempo, os episódios reprováveis que têm acompanhado o exercício do poder no Brasil. Não haverá apelo ético suficiente para evitar a deturpação e a corrupção da democracia.

Isso nos tem levado a um ponto em que parte da população já não vê mais sentido na ordem democrática e reivindica para si as atribuições exclusivas do Estado, imputando a seus grupos o poder de criar leis, julgar e punir. É a criação de um outro poder, regido por normas diferentes das oficiais e exercido em estruturas grosseiras disputadas com violência.

Por outro lado, quando a população passa a não perceber a fonte originária de sentido que deveria estar vinculada aos mecanismos democráticos de exercício do poder imanente, cria-se um ambiente propício para a ascensão de lideranças carismáticas e populistas, desejosas de concentrar todas as atribuições políticas em suas mãos, recriando fenômenos como o nazismo e o fascismo.

Se a população desejar manter o processo de construção de uma sociedade verdadeiramente fundada no poder imanente do povo, submetida a um ordenamento jurídico que garanta a igualdade, a liberdade, os direitos fundamentais do ser humano e o exercício pleno do poder popular, é urgente que se faça uma reflexão sobre os fundamentos das normas constitucionais modernas, identificando a profunda vinculação, na raiz, do direito com a política. Afinal, não se pode discutir ordenamento jurídico sem a compreensão das normas constitucionais; e nem estas últimas sem o processo que as produz. Não se faz leis e nem se garante a sua aplicação sem se ter poder para tal.