domingo, 7 de setembro de 2014

Tenho medo, logo existo¹

Michel Onfray

De que lógica procede o irracional? Do medo ao vazio intelectual, da angústia ante a evidência dificilmente aceitável, da incapacidade  dos homens para assumir sua ignorância e limitação dos seus faculdades, entre elas a razão. De onde podem  dizer "não sei" ou "ignoro por que", "não compreendo”, inventam  histórias e acreditam nelas. Para não ter que transgredir com um certo número de evidências, com as quais, sem  dúvida,  temos que contar (a vida é curta, logo vamos  morrer -  mesmo que seja até os cem anos, é curta em comparação com a eternidade do nada de onde viemos e para o qual vamos...-; temos  pouco ou nenhum poder sobre o desenvolvimento deste breve existência; depois da morte não há nada mais a decomposição, e não uma vida de outra forma, etc), os homens inventam ficções e lhes pedem auxílio.

O irracional preenche as brechas que a razão abre ao destruir ilusões. Incapazes de viver unicamente segundo o real racional, os humanos constroem um mundo completamente irracional mais fácil de habitar ao estar cheio de crenças que procuram uma aparente paz consigo mesmo. O raio cai sobre uma árvore? Um homem da  antiguidade greco-romana no sabia por que, e inventa um deus malvado, vingador, ciente de corrupção humano, que utiliza o feixe para corrigir a seus semelhantes. Zeus e seus relâmpagos, eis aqui a razão da tormenta grega ou romana. Mais tarde, o mesmo raio percebido por um homem do século XX, um pouco à corrente da física moderna, se converte na resultante de uma troca de polaridade entre nuvens carregadas de eletricidade e o sol. O rastro do movimento da energia em um arco elétrico, eis aqui a razão do raio. Razão antiga e mitologia contra a razão moderna e científica: o irracional de ontem se converte no racional de amanhã e para de inquietar, de dar medo.



O irracional é o que ainda não é racional, quer seja para um individuo, quer  seja para uma época ou uma cultura, e não o que não o será nunca. O que hoje está além da compreensão leva os homens a lançar hipóteses extraídas das fontes do irracional, onde não existem limites: se pode recorrer a imaginação mais fértil, às ideias más estranhas, desde que se tenha a eficaz ilusão de fazer retroceder a ignorância. A partir do momento em que o  problema já não se coloca, após a descoberta da solução por meio da razão, a crença é  abandonada e vai para  o museu de equívocos, que até recentemente se acreditava verdadeiro.

No entanto, sobre certas questões impossíveis de resolver com o
progresso da ciência, da investigação, da técnica, o irracional  reina como senhor durante longo tempo. Assim, diante de questões metafísicas (etimologicamente, aquelas que surgem além da física): de onde viemos?, quem somos?, onde estamos indo?, utilizando expressões cotidianas, em outras palavras: por que tempos que morrer?, o que há após a morte?, por que temos tão pouco poder sobre a nossa existência?, como será o futuro?, que sentido dar à existência?, com efeito ser mortal, não sobreviver, sofrem determinações, não escapar à necessidade, ser confinado a este planeta, são algumas dos motivos que fazem funcionar o motor irracional à toda velocidade.

Todas as práticas irracionais pretendem dar resposta a estes problemas angustiantes: a existência de espíritos imortais que se movem num mundo onde poderiam ser interrogados com a ajuda de uma mesa giratória nos acalma: a morte diz respeito apenas ao corpo, não a alma, quem conhece a imortalidade; a capacidade de ler e prever o futuro com signos, linhas da mão, borra de café, uma bola de cristal, cartas, fotos, nos acalma: o futuro já está escrito em algum lugar, alguns (médiuns) que podem acessar esse lugar  e revelar o seu conteúdo, eu não devo temer o bom ou mau uso da minha liberdade, de minha razão, de minha vontade, que deve vir virá; a existência de objetos voadores não identificados, portanto, planetas habitáveis​​, uma vida fora do sistema solar, de forças misteriosas que vêm das profundezas das galáxias, regozijamo-nos: podemos crer que a nossa sobrevivência em outra parte está assegurada por poderes que governam o cosmos e, portanto, a nossa pequena existência, etc


O irracional é um alívio, sem dúvida, mas uma ajuda pontual, por que não cumpre suas promessas. Em vez disso, a razão pode ser igualmente útil, mas com mais segurança: principalmente quando se concentra na destruição de ilusões e crenças, ficções criadas pelos homens para o conforto com ultramundos, os mais além inventados, que sempre dispensam um bem viver vida aqui e agora. A filosofia e o uso crítico da razão permitem obter outras soluções, neste caso, certezas viáveis ​​e consolações muito mais seguro: para a mesma evidência (a morte, a limitação dos poderes humanos, a pequenez do homem diante da imensidão de mundo, a angústia frente ao destino), a filosofia fornece meios para controlar o nosso destino, para nos converter em atores de nossa existência, para nos libertar dos medos inúteis e paralisantes -  e não nos abandona, atados de  pés  e mãos, como as crianças, a mitos de ontem ou hoje. Pare de olhar para as estrelas, o seu futuro não está escrito  em nenhum lugar: está por ser escrito – e só você pode ser o autor.

¹ Tradução nossa
REFERENCIAS:


ONFRAY, Michel. Antimanual de filosofia: lecciones socráticas y alternativas. 4.ed. Madrid: EDAF, 2007.



Exercícios: 

Comente e lembre de se identificar corretamente.

    
      1. Leia o texto de Michel de Onfray e responda, de quais filósofos citados, o pensamento dele mais se aproxima?
    

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