sábado, 9 de outubro de 2010

Subjetividade, cultura e educação: a construção de si mesmo.



Arlindo R. Picoli

Michel Foucault foi um filósofo francês que se dedicou a entender a formação no sujeito em nossa história. A palavra sujeito diz respeito a nossa realidade interior, indica nossas emoções e pensamentos e é identicado com outros termos como eu, alma ou espírito. Ao contrário de Descartes que pensava ser o sujeito uma substância, Foucault vai afirmar que ele é na verdade uma forma, o que implica dizer que o  sujeito nem sempre é idêntico a sim mesmo. Portanto a característica fundamental do sujeito é a mudança e não a permanência ou a identidade. Isso nos leva a suspeitar da validade universal da natureza humana e a conceber uma ética ou moral que é antes de tudo um trabalho artesanal, único e singular de mesmo.
Em Foucault a ética é justamente a prática da liberdade, numa relação circular em que a liberdade é a condição ontológica da ética. Na antiguidade, a ética se estabeleceu em torno do preceito do cuidado de si, de tal forma que era preciso conhecer as verdades, prescrições e regras de conduta para trabalhar sobre si e praticar a liberdade, para assim construir um ethos que fosse bom, belo, honroso, respeitável, memorável e que pudesse servir de exemplo, de inspiração para os demais. E se quisermos aprender as práticas que tornam possível o ethos, precisamos entrar em um jogo de verdade, mesmo que seja um jogo transmissor de conhecimentos, tomando todo cuidado para não exercer a autoridade como dominação.
A liberdade é, portanto, em si mesma política. Além disso, ela também tem um modelo político, uma vez que ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem dos seus apetites, o que implica estabelecer consigo mesmo uma certa relação de domínio, de controle, chamada de arché – poder, comando (FOUCAULT, 2004b, 270).

Desta forma, surge em Foucault uma outra concepção de poder, um poder subjetivo, independente da normalização e que atribui ao sujeito a capacidade de libertar-se da sujeição dos poderes externos, do biopoder e do poder disciplinar, constituindo-se à sua própria maneira, governando a si mesmo.
Assim como no hospital, a família e a prisão, o poder disciplinar e o biopoder encontram na escola mais um local para serem exercidos, a escola fabrica subjetividades conhecidas e determinadas pelo biopoder. As disciplinas escolares são uma forma produtiva e eficiente de lidar com o espaço e o tempo, vigilância e registro de informações, conforme o anseio por determinado tipo de sujeito, de mão-de-obra ou de cidadão almejado, pela sociedade, família, governo e mercado de trabalho. Como o poder disciplinar é um impedimento para exercermos  nossa liberdade, precisamos pensar alternativas que criem outros mecanismos a serviço da produção de si mesmo. Trata-se de, na medida do possível, inventar novas técnicas eficazes, que organizando o espaço, o tempo e as informações, possibilitem as transformações de si mesmo[1]. Outro caminho seria pesquisar em que medida poderíamos estudar, testar e adaptar as disciplinas, regras e austeridades próprias do cuidado de si da antiguidade para os dias de hoje. Se as práticas pedagógicas ajudam o estudante a desenvolver, maximizar e motivar o seu contato com diversas áreas de saber, além do desenvolvimento de diversas capacidades, também podem ser um meio para a experiência de si mesmo.
Se concebermos a educação como um conjunto de técnicas transformadoras, como um trabalho ético que o indivíduo faz sobre si mesmo, poderemos dar um passo importante para resgatar a parrhêsia, a coragem da verdade socrática, em que o indivíduo constrói-se eticamente, independente do que possa pensar a maioria. Podemos pensar a educação numa relação com a parrhêsia e a vida, que funcione como alternativa ao controle do biopoder, justapondo à redução da existência humana meramente produtiva e reprodutiva, pelo desenvolvimento de uma vida mais autêntica feliz e bela.
No que se refere ao platonismo, Foucault nos mostra que o caminho traçado no Primeiro Alcibíades, o objeto do cuidado é a alma, assumindo a forma do conhecimento; em outro diálogo, no Lacques, o objeto do cuidado passa a ser a bios, ou seja a vida, e para efetuar este cuidado, é preciso formar a própria existência através de regras e técnicas capazes de proporcionar uma vida bela (GROS, 2004, p.162).

[...] eu queria tentar mostrar, e mostrar a mim mesmo, como globalmente a existência, a bios, foi constituída no pensamento grego, e, eu creio, pela emergência e pela fundação da parrhêsia socrática, como a existência e a bios foi constituída como um objeto estético, como objeto de elaboração e de percepção estética, a bios como uma obra bela. E eu creio que tenho a abertura de um campo histórico de uma grande riqueza. Há, certamente, a fazer a história da metafísica da alma; há também a fazer quem é, até certo ponto, o outro lado e também a alternativa, uma história estilística de da existência, ou ainda uma história da vida como beleza possível[2]

Outro deslocamento importante em se tratando da vida, indicado por Foucault, diz respeito à ética estóica e cínica. Enquanto a ética estóica exigia necessariamente uma correspondência entre o agir e o falar, colocando a verdade à prova, ordenando a existência e trabalhando a verdade como regularidade; a ética cínica da parrhêsia colocava a própria vida à prova para verificar até que ponto as verdades realmente podem ser vividas, desenvolvendo uma verdade como ruptura, recusa e denúncia. Em ambas “não se trata da fundação de uma moral que busca o bem e se afasta do mal, mas da exigência de uma ética que persegue a verdade e denuncia a mentira” (GROSS, 2004, p. 166).
Infelizmente as práticas pedagógicas são usadas, muitas vezes, como um fim em si e não um meio, atreladas como estão a uma repetição impensada e acrítica. Acreditamos que a problematização destas ações é urgente, principalmente para que não sejam usadas apenas para transmitir verdades, ou memorizar saberes, mas para que também possibilitem a escola como espaço de resistência e criação de formas alternativas de existência.
As práticas pedagógicas poderiam se converter em fazeres produtores de liberdade, recusando-se à fabricação de subjetividade próprias da biopolítica, apresentando a verdade dos saberes como um jogo importante dentro das regras a que estamos submetidos, mas mesmo assim apenas um jogo, e não necessariamente único. Por outro lado precisamos resistir às formas de normalização e homogeinação que submetem todo o corpo escolar às interferências de poderes e saberes exteriores, normalizados e inquestionados, que reduzem a educação a uma fábrica de recursos humanos. Sem descartar necessariamente a importância da formação para o trabalho, para nossa sobrevivência, devido às regras já estabelecidas pelo biopoder, é preciso possibilitar nos sistemas de ensino o trabalho artístico de uma vida bela, direcionada por uma alma que constrói a si mesma, atualizando a ética do cuidado de si.
O atual discurso pedagógico dominante, voltado para a qualificação, para a aquisição de habilidades e competências, afasta os sujeitos da possibilidade de estabelecerem certas relações consigo próprios, uma vez que é sempre um certo conhecimento de fora, exterior ao próprio sujeito, que permite o acesso à verdade sobre si, a seu pensar bem, a seu agir correto, a seu proceder responsável, a seu sentir solidário. “Enquanto a exigência das normas é interna ao organismo, a normalização que se estabelece na sociedade deve-se a uma escolha e uma decisão exteriores ao objeto normalizado” (PORTOCARRERO, 2006a, p. 7). A ampla gama de verdades das habilidades e competências já não é mais resultado de um movimento de transfiguração do próprio sujeito, mas de seu grau de conformidade a certos padrões antecipados e exteriormente estabelecidos.
Ao mesmo tempo em que importa discursos, a escola também exporta subjetividades moldadas conforme os padrões desejados, e, a este respeito, não podemos esquecer a metáfora inspiradora de Foucault quando tratava de alguns temas de Diferença e Repetição de Deleuze:

[...] pertencemos à escola de um mestre que só pergunta a partir das respostas inteiramente escritas em seu caderno: o mundo é nossa sala de aula. Ínfimas crenças. Mais quais? A tirania de uma vontade boa, a obrigação de pensar “em comum” com os outros, o domínio do modelo pedagógico, e sobretudo a exclusão da tolice, eis toda a vilania moral do pensamento, da qual seria fácil sem dúvida decifrar o jogo em nossa sociedade. É preciso nos libertarmos disso. (FOUCAULT, 2005a, p. 242).

Conforme já vimos, o indivíduo não se constrói sozinho, necessita do outro; ninguém aprende a cuidar de si sozinho, mas sempre com a ajuda de um mestre (Foucault, 2004a, p. 58). Sócrates ensina um modo específico e particular de acenar para o papel do mestre: ele afirma uma relação pedagógica em que o mestre não transmite ao aluno o que ele pressupõe que sabe e que o outro ignora, mas uma certa relação de cuidado consigo.
Apesar da noção de cuidado de si aparentemente sugerir, hoje em dia, uma preocupação exclusiva consigo mesmo, uma espécie de egoísmo narcisista, em Sócrates, o cuidado de si, passa pelo cuidado do outro. Quando Sócrates se preocupa com Alcibíades no diálogo homônimo, o que justifica o cuidado de si é o governo da pólis. Se Sócrates renunciou a participar nos assuntos da política, como explicita na Apologia, não foi por temer a morte, mas por afirmar um outro campo de intervenção política na formação dos cidadãos, que Foucault denomina de parrhêsia ética ou filosófica frente às clássicas formas de dizer a verdade na Grécia clássica: a parrhêsia do político, do profeta, do sábio e do sofista (Foucault, 1984b, p. 11). Com efeito, Sócrates não se pronuncia na Assembléia ou no Conselho de Atenas, porque ali a verdade está submetida à lógica da retórica; não reproduz a palavra profética, mas a coloca à prova em seus efeitos na realidade; não fala, como o sábio, das coisas e da ordem do mundo, mas da alma e do como se deve viver; finalmente, não acredita, como o professor tradicional, o sofista, possuir saberes ou técnicas que o aluno deve aprender. Ao invés disso, ele está empenhado numa relação consigo mesmo que o aluno pode também afirmar para si. Leiamos Foucault:

[...] em relação à palavra do ensino, Sócrates estabelece uma diferença, se vocês quiserem, por reversão. Onde o professor diz: eu sei e tu escutas-me, Sócrates vai dizer: eu nada sei e se eu me ocupo de ti, não é para te transmitir o saber que te falta; é para que, compreenda que nada sabes, aprendas por isso a te ocupar de ti mesmo [3].

Uma educação não é individualista por se ocupar do individuo, mas pelas relações que propicia nos indivíduos consigo e com os outros. A educação atual, que se pretende ou que se diz socializadora, lança mão de estratégias – como os processos de avaliação, que têm como foco um indivíduo capaz de produzir sozinho, capaz de competir com os outros –, recompensando, na escola ou fora dela, como nos diversos concursos, os momentos da reprodução individual dos conhecimentos ou competências adquiridas.
No cuidado de si, o mestre busca que o aluno cuide de si, mas não para se fechar ou se destacar sobre os outros. O sentido da intervenção do mestre é fazer com que o discípulo se desloque do modo de ser no qual está. Na questão do cuidado de si – tanto como conhecimento de si quanto como experiência de vida –, o que está em jogo é uma maior atenção para o que, nas discussões pedagógicas, muitas vezes é desconsiderado, ou seja, a constituição dos sujeitos não apenas de determinado modo de ser, mas também de um estilo de viver.
No livro VII de A República (518c-d) fica claro que Sócrates concebe a educação como uma técnica de conversão, uma prática que redireciona a alma para si mesma.  Nestes termos, caberia a educação encontrar as maneiras mais eficientes e fáceis proporcionar este movimento para si mesmo.
Se pudermos nos valer do cuidado de si para ressignificar a educação, é preciso lembrar a necessidade de que nós, educadores, ocupemo-nos também de nós mesmos. O que nos parece importante ressaltar é que as discussões pedagógicas, muitas vezes, se limitam a questões metodológicas do aprendizado, da avaliação, do currículo, formação continuada, etc., elas pouco se atêm à construção tanto do professor quanto do aluno. Assim é importante afirmar que para que o professor se torne mestre e ajude o aluno a alterar o seu modo de ser, é preciso que antes, como o mestre apontado por Foucault, ele cuide de si mesmo.
Foucault localiza no Primeiro Alcibíades três tipos de maestria relacionadas à ignorância e a memória. O primeiro é a maestria do exemplo, em que o outro é um modelo indispensável para a formação do jovem. O segundo a maestria da competência que envolve a transferência de saberes, fundamentos, aptidões, habilidades, capacidades, etc. E para terminar, a maestria socrática, do embaraço e da descoberta praticada no diálogo (FOUCAULT, 2004a, p. 158).

A mestria socrática é interessante na medida em que o papel de Sócrates consiste em mostrar que a ignorância, de fato, ignora que sabe, portanto, que até certo ponto o saber pode vir a sair da própria ignorância. Todavia, o fato da existência de Sócrates e a necessidade do questionamento de Sócrates provam que, não obstante, este movimento não pode ser feito sem o outro (FOUCAULT, 2004a, p. 159).

Deixemos de lado o modelo dos professores modelados pela sociedade atual, reprodutores de habilidades e capacidades, para nos transformarmos em mestres, focalizados na potencialidade de auto-construção de cada aluno.
Sócrates mostra que só pode provocar no outro certo trabalho quem já realizou esta atividade consigo mesmo. Em outras palavras, o professor não pode ocupar uma posição de exterioridade do caminho que ele convida o aluno a percorrer.
Nos termos que interessam a Foucault, Sócrates só pode ser mestre do cuidado porque ele cuida de si. Contudo, Sócrates cuida de si de uma maneira especial: ocupando-se com os outros. Assim, o cenário socrático do cuidado de si sugere que, se uma prática educacional busca intervir no modo de ser e de estar no mundo dos seus atores, é preciso, antes de mais nada, que o professor se ocupe consigo mesmo. E cuidará de si fazendo com que os outros também tomem conta de si. Eis o paradoxo do cuidado de si, que não é apenas o paradoxo de Sócrates, mas o do professor que se torna mestre, antigamente, hoje e sempre: cuidar de si somente através do cuidado do outro.
Embora nossa defesa da incorporação prática do cuidado de si possa sugerir uma inversão vingativa da relação desequilibrada entre prática e teoria, entre o cuidado e o conhecimento, ela é na verdade uma reorientação e fusão de ambas. Assim, propomos uma nova concepção da escola, como espaço privilegiado de cultura de si, inspirado pelo fenômeno quase universal do período de ouro do cuidado de si e do momento socrático.
Para especificar a ampla divulgação do cuidado de si durante o tempo greco-romano a ponto de se tornar um acontecimento cultural, e para não usar este termo de forma vaga, Foucault estabelece quatro condições para justificar o que foi a cultura do cuidado de si. A primeira delas estabelece que “dispomos de um conjunto de valores que têm entre si um mínimo de coordenação, de subordinação, de hierarquia(FOUCAULT, 2004a, p. 220). Depois que “estes valores sejam dados como sendo ao mesmo tempo universais, mas não acessíveis a qualquer um” (FOUCAULT, 2004a, p. 220). Para atingir estes valores não é tão fácil, é preciso esforçar-se por toda vida, já que, “são necessárias certas condições precisas e regradas(FOUCAULT, 2004a, p. 220).  E finalmente a quarta condição estabelece que o acesso a estes valores esteja “condicionado por procedimentos técnicos mais ou menos regrados, que tenham sido elaborados, validados, transmitidos, ensinados, e estejam também associados a todo um campo de saber” (FOUCAULT, 2004a, p. 221). Resumindo, a cultura de si é um ”campo de valores organizado, com suas exigências de comportamentos e seu campo técnico e teórico associado” (FOUCAULT, 2004a., p. 222).

[...] se chamarmos cultura ao fato de que esta organização hierárquica de valores solicita do indivíduo condutas regradas, dispendiosas, sacrificiais, que polarizam toda a vida; e enfim que esta organização do campo de valores e o acesso a estes valores só se possam fazer através de técnicas regradas, refletidas e de um conjunto de elementos que constituem um saber, então, nesta medida, podemos dizer que na época helenística e romana houve verdadeiramente uma cultura de si (FOUCAULT, 2005, p. 221).

VEIGA-NETO (2006a, p. 30) acredita que “o caráter de dominação dos processos educacionais nada tem em si de lamentável”. E acrescenta: “não há como imaginar uma cultura, qualquer cultura, sem ações continuadas e minuciosas ‘daqueles que já estavam ai’ sobre aqueles que ‘não estavam ai’”.  Contudo, se concebermos a cultura como um processo dinâmico em que os valores são constantemente questionados e criticados, gerando novas maneiras de ser e agir, veremos que a ação cultural de uma geração sobre outra não se dá sem resistências daqueles que chegam e provocam modificações culturais, muita vezes lentas e sofridas. Por outro lado, apesar da sua ampla difusão no período de ouro, a cultura de si prosseguia como outra forma de viver, sua universalização nunca foi absoluta, envolvia muitos esforços e permanecia como uma alternativa a outros estilos de vida. De nossa parte, lamentamos muito que a educação continue sendo um processo de dominação cultural elaborada pelos que já estavam aqui, e tenhamos perdido o contato as tecnologias do eu. É por isto que propomos o seu regate histórico, prático, e sua adaptação aos dias de hoje, como uma alternativa de crítica, de prática de liberdade à cultura já constituída, através da educação.
O nosso grande problema é que grande parte dos professores – e também dos funcionários que muitas vezes se colocam hierarquicamente como fiscalizadores do ensino - permanecem presos à perspectiva da recognição de conteúdos, privilegiando a síntese do conhecimento científico, universal e impessoal, e raramente de algo parecido com o cuidado de si mesmo. Com efeito, não encontramos na escola uma relação como a de Sócrates e Alcibíades, ou qualquer de seus discípulos. Apesar das condições atuais serem completamente diferentes da antiguidade, ela permaneça como possibilidade, pois a busca para fazer a experiência de si mesmo permanece. Além disso, a amizade que se estabelece entre alunos e professores é ainda hoje, como na antiguidade, uma condição para a produção cuidadosa de subjetividades.

Para o último Foucault, é possível, na prática singular da amizade, inventar uma relação não normalizada com o outro, visto que os amigos inventam formas de relações singulares. Os modos de vida dos amigos podem fazer surgir sistemas não normativos entre os seres (PORTOCARRERO, 2008b, p. 14).

Partimos da hipótese que a educação contemporânea produz um vazio resultado da tensão meramente conteudista das diversas áreas do saber, das regras de conduta e da subjetivação imposta ao aluno. Tal vazio ocorre porque embora úteis para o mundo moderno, estes conhecimentos e práticas não são capazes, por elas mesmas, de efetuarem a transformação do sujeito, que segue sentindo a falta de algo: a necessidade de ser singular.
Assim propomos o cuidado de si como uma experiência de pensamento no espaço escolar. E para isto, é bom lembrar que, dentre as três formas de experiências que Foucault se move, nos referimos a mais tardia, como forma histórica de subjetivação[4], e isto,
                    
[...] implicava duas tarefas negativas: uma redução nominalista da antropologia filosófica e também das noções que podiam apoiar-se nela, e um deslocamento em relação ao domínio, aos conceitos e aos métodos da história das sociedades. Positivamente, a tarefa era trazer à luz o domínio em  que a formação, o desenvolvimento, a transformação das formas de experiência podem ter lugar; ou seja uma história do pensamento. Por ‘pensamento’ entendo o que instaura, em suas diferentes formas possíveis, o jogo do verdadeiro e do falso e que, em conseqüência, constitui o ser humano como sujeito de conhecimento; o que funda a aceitação ou o rechaço da regra e constitui o ser humano como sujeito social e jurídico; o que instaura a relação consigo mesmo e com os outros e constitui o ser humano como sujeito ético (FOUCAULT, 1994c, 579) (tradução nossa).
 Portanto, para colocarmos a subjetivação nas mãos de cada aluno, é preciso efetuar um expurgo antropológico, rejeitando a idéia de um sujeito único e fixo (a consciência, a razão, a humanidade). O que Foucault chama de a ‘morte do homem’ é o aporte negativo da experiência e que afasta seu pensamento das filosofias do sujeito e das ciências humanas modernas. Por outro lado, não podemos esquecer que o sujeito é o eixo de todo o trabalho histórico-filosófico de Foucault apresentado como uma análise histórica dos diferentes modos de subjetivação.
Em uma perspectiva libertadora, precisamos abandonar a idéia de um sujeito pré-formatado e questionar alguns sentidos atribuídos à autonomia. A autonomia não pode ser reduzida aos deveres que cada um deve adotar para se adequar a um modelo previamente aprovado de determinada forma de ser.  Precisamos, de fato, perguntar constantemente pela razão e por qual motivo estamos nos tornando o que somos, deslocando a autonomia para que ela passe a ser a problematização  das normas e de nossa forma de ser.
Por outro lado, em sua relação com a verdade e o poder presentes na cultura dominante o currículo escolar peca pelo utilitarismo excessivo. O importante é privilegiar aquelas áreas que fazem a diferença no ingresso competitivo das seleções para o trabalho, ou que possibilitam o ingresso no ensino superior. Tal fato justifica a hierarquia entre as disciplinas e afeta até mesmo o interesse dos alunos.  Entretanto, a escola não deveria ser reduzida ao que é determinado por instâncias políticas e econômicas exteriores, negligenciando o que poderia ser uma formação muito mais plena do aluno, se promovesse a cultura como um todo, incluindo a própria cultura do aluno, resultado de sua experiência no mundo, assim como a cultura do cuidado de si. 
Reconhecemos em todos os cantos da escola a importância utilitária dos conhecimentos adquiridos sem que se perceba que o que é tido por útil pode não sê-lo. Ora, quem busca algo útil está procurando um bem para si mesmo e não um mal. Como vimos anteriormente, para Epicteto fazer o mal era procurar algo por sua utilidade, sem se dar conta de seu aspecto nocivo, tomando por verdadeiro o falso, assim era fundamental que o discípulo efetuasse uma crítica constante de si que evitasse fazer o mal e continuar pensando que era algo útil e bom. Portanto, quem busca a utilidade de algo sem se dar conta de seu possível aspecto nocivo, tomando algo inútil como útil, está se prejudicando. Ao reduzir o sentido da educação a um conjunto de saberes que preferencialmente qualificam para exercer determinada atividade em troca de dinheiro, prestígio social, e poder, esquecendo antigos norteadores de si mesmo, como a felicidade, pureza ou sabedoria; não estaríamos tomando um mal por um bem? Não estamos negando a importância da qualificação para o trabalho em reduzir, em parte, algumas desigualdades na sociedade atual, mas será que podemos atribuir a nossa existência um objetivo de consumo sempre maior de bens e serviços? Temos tanta certeza assim que apenas um emprego bem remunerado vale uma vida inteira? Como é a liberdade que tal educação proporcionará? Há aqueles que oferecem suas vidas por uma falsa utilidade, por um mal maquiado de bem, uma verdade sutilmente proclamada, segundo a qual o conhecimento bom e válido é aquele útil, apenas no sentido de ser capaz de gerar mais lucro e consequentemente mais poder. Portanto proporcionar experiências de pensamento, problematizando o sentido do que útil, é urgente, pois pode possibilitar subjetividades mais criteriosas e livres da aparente utilidade dos conhecimentos.
De quem é a responsabilidade pela formação de gerações inteiras cujo objetivo maior é: “ser alguém na vida”?  Esta expressão espontânea dos alunos, que bem poderia ser uma apologia do período de ouro do cuidado de si, traz indiretamente o castigo social a todos os seus fracassados, condenados a uma inexistência simbólica, porém real.  Não é à toa que o tema da inclusão se tornou tão urgente na educação. Cada vez mais próxima do antigo monstro que desafiava Édipo, “decifra-me ou te devoro”, hoje a esfinge moderna proclama: “saiba o que eles querem ou te excluo”. Como a escola se converteu em fábrica de sujeitos que nunca conheceram a possibilidade de outras formas de existir, diferente do que pensa a maioria? 
Isto tudo nos remete à importância que a verdade adquire na escola. Pensamos que a verdade escolar, fundada em uma síntese do discurso científico e acadêmico, está sujeita a uma série de interferências políticas e econômicas. A verdade “é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação) (FOUCAULT, 2005b, p.13). Além disso, para ter acesso a esta verdade o sujeito tem que ser disciplinado, adestrado, uma vez feito o condicionamento, o domador pode se retirar para se apropriar de um ser mais manso e previsível. “A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 1987, p. 143). A disciplina é o método que proporciona o controle do corpo, estabelecendo uma relação de docilidade e utilidade: quanto mais obediente mais ganha em suas habilidades.

As disciplinas – seja no eixo do corpo, seja no eixo dos saberes – funcionam como códigos de permissão e interdição. Elas funcionam como um substrato de inteligibilidade para variados códigos e práticas segundo os quais se dão determinadas disposições, aproximações, afastamentos, limites, hierarquias e contrastes, de modo que, por si só e silenciosamente, elas não apenas engendram determinadas maneiras de perceber o mundo e de atuar sobre ele, como também separam o que é (considerado) verdadeiro daquilo que não o é (VEIGA-NETO, 2006a, p. 26).

Para Lenoir (apud VEIGA-NETO, 2006a, p. 26), a disciplina funciona como um  instrumento de conhecimento e comunicação, racionalizando e economizando a produção. Além disso, “as disciplinas agem discretamente: encobrem, sob o manto dos saberes que elas mesmas organizam, o poder a que tais saberes dão sustentação e colocam em funcionamento” (LENOIR apud VEIGA-NETO, 2006a., p. 27), reduzindo a vontade de resistir.
No entanto, caberia uma distinção entre o poder disciplinar e a dominação própria da violência:

De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes. Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro pólo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder que o ‘outro’ (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis (FOUCAULT apud VEIGA-NEITO, 2006a, p. 28-29).

Por outro lado, na escola, disciplina também é o nome dado às áreas em que se divide o saber, o que garante uma profundidade e uma economia evidente em cada uma delas. A princípio, nada disso impede o diálogo entre os saberes, mas um grande problema de nossa cultura é o efeito da hierarquização destas áreas de conhecimento, dentro e fora da escola. A supervalorização de determinados saberes provoca um distanciamento entre as disciplinas, criando uma ilusão, não só de independência, mas também de isolamento.  Portanto, longe de pretender pulverizar as disciplinas em uma unidade totalizante, como parece ser o caso de algumas pedagogias interdisciplinares[5], e que muitas vezes resultam na criação de novas disciplinas, seria muito mais eficaz garantir as especificidades de cada conhecimento juntamente com a possibilidade de atravessá-las de diferentes maneiras, como parece pretender o discurso da transdisciplinaridade[6] (FEITOSA, 2004, p. 96).
Certamente, é devido a este caráter eficientemente produtivo da especialização do saber, próprios das disciplinas escolares, que Foucault parece não ver nenhum problema na prática pedagógica da transmissão do conhecimento, chegando a duvidar que uma prática autodidata possa resultar em alguma melhoria:

Nada prova, por exemplo, que na relação pedagógica – quero dizer, na relação de ensino, essa passagem que vai daquele que sabe mais àquele que sabe menos – a autogestão produza os melhores resultados; nada prova, pelo contrário, que isso não paralise as coisas (FOUCAULT, 2004b, p. 223).

 Como vimos no cuidado de si, a figura do mestre, do amigo, ou seja, de outro, é sempre indispensável ao cuidado de si mesmo. O problema não está na transmissão, mas na necessidade conjunta de transformação. Todavia, se entendermos o termo disciplina conforme sua origem latina – disciplina – como a ação de instruir ou ensinar uma verdade ou conhecimento, e não considerarmos a necessidade de transformação daquele que aprende, estaremos falando de algo muito diferente do rigor necessária às práticas de si mesmo.  No mundo atual este descarte de si mesmo no acesso a verdade produz conhecimentos superficiais e é realizado não só pela escola, mas principalmente pela mídia.
Na sociedade de comunicação e informação somos bombardeados por um sem número de informações que nos afetam diretamente ao favorecer a stultitia. Muitas vezes, a escola não privilegia a análise destes dados, que tendem a ser incorporados acriticamente, potencializando um mero acúmulo de dados. Como vimos, no período de ouro, o cuidado de si deixou de ser formador e passou a ser mais crítico, tornando-se mais importante corrigir que instruir (FOUCAULT, 2004a, p. 155). Sendo assim, a recuperação de uma das aplicações do cuidado de si, remete-nos à sua função crítica e corretiva, ao proporcionar o esvaziamento de nossos hábitos nocivos, culturalmente adquiridos, inclusive dos pais e mestres mal preparados.
Por isto, as marteladas deferidas pela crítica foucauldiana nos remete ao que Veiga - Neto chama de hipercrítica, uma atitude ou êthos capaz de radicalizar a própria crítica radical, uma insatisfação inspirada em Kant e que exige do cotidiano uma constante retomada da ação (KIZILTAN, BAIN & CAÑIZARES apud VEIGA-NETO 2006b, p. 84). Dessa forma, a hipercrítica não se limita ao kantismo, pois não recorre a fundamentos ou tribunais superiores a ela mesma, seu papel é encontrar no mundo concreto as raízes das práticas e as modificações pelas quais passaram (VEIGA-NETO, 2006b, p. 84). Tal crítica está em movimento constante, é sempre provisória, questionadora de si mesma, a ponto de justificar a idéia segundo a qual Foucault faz uma filosofia da prática em que só admite o a priori histórico do acontecimento[7] − rejeitando os demais a priori clássicos: Deus, Espírito, Razão, Natureza −, portanto mantendo-se contrária às metanarrativas da Modernidade (VEIGA-NETO 2006a, p. 15). A filosofia da prática afastaria os discursos     que concebem a história com um fim previamente determinado − como no idealismo, iluminismo e no marxismo. Assim, romperia também com “a crença na totalidade, numa realidade objetiva externa a nós e acessível pelo uso de uma razão, essa mesma capaz de levar progressivamente o sujeito a um estado de autonomia ou emancipação libertária (VEIGA-NETO 2006b, p. 86) (grifo do autor). Como vimos no decorrer deste trabalho, a emancipação entendida como prática de liberdade, não se dá pela razão, ou pelo conhecimento e sim pela askésis, um trabalho singular e interno efetuado por quem cuida de si na sua relação com os outros, a um só tempo transformador e desasujeitador do sujeito.
Ao contrário do que pode parecer, esta hipercrítica não é um rompimento com a verdade e com a razão, mas é um recolocar destas soberanas usurpadoras em seu devido lugar, ou seja, em nosso mundo. Elas não são divindades intocadas, são construções humanas e questionar os seus efeitos, razões, relações e modificações compõem a prática da crítica.
O papel do professor hipercrítico não é ensinar a verdade, nem instruir sobre o que se deve fazer ou pensar, mas viver em seus atos, em sua fala, escrita e práticas, o exercício da crítica em si mesmo, inclusive do julgamento de suas próprias certezas e costumes. Como já assinalamos, esta atitude demanda constantemente pela sua provação experimental, e se a crítica é a arte de não ser governado, a qualquer preço, podemos dizer que a experiência é a transformação de nós mesmos desencadeada por uma prática de liberdade.



[1] Como exemplo, podemos citar as experiências de formação de professores e experiências de pensamento com crianças, desenvolvidos pelo professor Walter Omar Kohan (UERJ), o philodrama do professor Ricardo Sassone (UBA) e as propostas de ensino de filosofia defendidas pelo professor Sílvio Gallo (UNICAMP), e que possibilitam técnicas e práticas de liberdade visado transformações subjetivas por si mesmo.

[2] [...] “je voulais essayer de vous montrer, et de me montrer à moi-même, comment globalement l'existence, le bios, a été constituée dans la pensée grecque, et, je crois, par l'émergence et la fondation de la parrhêsia  socratique, comment l'existence et le bios a été constitué comme un objet esthétique, comme objet d'élaboration et de perception esthétique, Le bios comme une œuvre belle. Et je crois qu'on a là l'ouverture d'un champ historique d'une grande richesse. Il y a, bien sûr, à faire l'histoire de la métaphysique de l'âme ; Il y a aussi à faire ce qui en est, jusqu'à un certain point, l'autre côté et aussi l'alternative, une histoire de la stylistique de l'existence, ou encore une histoire de la vie comme beauté possible “  FOUCAULT, 29/02/1984b, 1ª hora, trad. nossa.
[3][...] par rapport à la parole d'enseignement, Socrate établit une différence si vous voulez par retournement. Là où le professeur dit: je sais et écoutez-moi, Socrate va dire: je ne sais rien et si je m'occupe de vous, ce n'est pas pour vous transmettre le savoir qui vous manque, c'est pour que, comprenant que vous ne savez rien, vous appreniez par là à vous occuper de vous-même Ibidem.

[4] São três estes deslocamentos: “Inicialmente como um conceito próximo à fenomenologia existencial, a experiência como o lugar em que é necessário descobrir as significação originárias. [...] Posteriormente, através da leitura de textos literários e filosóficos (Bataille, Blanchot, Nietzsche), [Foucault] descobre outra forma de experiência.  Já não aquela que funda o sujeito, mas como forma de de-subjetivação. [...] Finalmente o conceito de experiência recebe uma elaboração propriamente foucauldiana: como forma histórica de subjetivação” (CASTRO, 2004, p. 128).


[5] Interdisciplinar: interação entre duas ou mais disciplinas, transferências de métodos de uma por outra (exemplo: associação da física com a medicina, geografia com a sociologia, arte e informática. Tendência a ansiar pela totalidade. Muitas vezes essas associações acabam por resultar em uma nova disciplina, que sintetiza as características de áreas distintas, como por exemplo, a medicina nuclear ou a geografia cultural. A prática interdisciplinar tende a reafirmar o poder da disciplina (FEITOSA, 2004, p. 96).
[6] Transdisciplinar: entre, através e além de qualquer disciplina, a prática transdisciplinar supõe não a totalidade, mas a complexidade, a diversidade e a pluralidade intrínseca a realidade... trata-se muito mais de uma atitude do que uma disciplina específica (ibidem).
[7] Conforme páginas 58 e 59.

sábado, 2 de outubro de 2010

Traduzir-se




Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.



Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir-se uma parte

na outra parte

- que é uma questão

de vida ou morte –

será arte?

Ferreira Gullar

Adriana Calcanhotto -- Traduzir-se: http://www.youtube.com/watch?v=gqU4bSMhDXM&ob=av2e

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não atem calma.


Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,



Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.



Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: “Fui eu?”

Deus sabe, porque o escreveu.


Fernando Pessoa

A cotovia e os sapos

Adaptação bem-humorada de fábula chinesa

Era uma vez uma sociedade de sapos que vivia no fundo de um poço escuro e profundo, do qual nada se via do mundo exterior. Eram governados por um enorme sapo-chefe, mas a classe de trabalhadores mais chegada ao tirano o chamava de Cardosão. Ele se dizia soberano naquele lugar e era dono de tudo que saltava ou rastejava. Todos os sapos trabalhavam para ele. Não movia uma palha. A coletividade de sapos era obrigada a trabalhar naquele ambiente fétido e úmido para encontrar no lodo vermes e insetos para engordar mais ainda o sapo Cardosão.



De vez em quando vinha uma cotovia excêntrica, chamada Ética, que voava dentro do poço e contava para os sapos as maravilhas que vira em suas viagens pelo imenso mundo lá fora. Falava do sol, da lua e das estrelas, das montanhas altaneiras, dos vales férteis e dos vastos mares, e ainda da delícia de explorar o espaço infinito.

Sempre que a cotovia chegava o sapo Cardosão recomendava aos sapos trabalhadores que ouvissem atentamente tudo o que aquele pássaro amalucado tinha para contar. O sapo Cardosão, que era meio surdo e de cultura duvidosa, nunca sabia direito o que a cotovia estava dizendo e falava para os trabalhadores que a cotovia se referia "à terra feliz para onde vão todos os sapos bons..."

Uma parte dos sapos trabalhadores acreditava no que o sapo Cardosão dizia e ficava cética em relação ao que a cotovia falava. Outra parte, menos expressiva, começava a ficar encantada.

Entretanto, havia entre eles um sapo-político (um tal de Inácio da Selva), que formulara uma idéia nova e interessante a respeito da cotovia. "O que a cotovia diz não é exatamente uma mentira", dizia ele. "Nem é loucura. Na verdade, ao falar dessa maneira esquisita, ela está se referindo ao lugar maravilhoso em que poderíamos transformar esse poço, se quiséssemos. Quando ela fala do sol e da lua, está se referindo às magníficas formas de iluminação moderna que poderíamos adotar para eliminar as trevas em que vivemos. Quando canta céus altos, refere-se à saudável ventilação de que deveríamos gozar, ao invés dos ares úmidos e fétidos a que nos acostumamos. E o mais importante: quando a cotovia enaltece o vôo altivo e livre entre as estrelas, refere-se à liberdade que todos teremos quando nos livrarmos da opressão do sapo-chefe. Vêem? Não devemos desdenhar o pássaro. Em lugar disso, ele deve ser apreciado e louvado por nos proporcionar uma inspiração que nos livra do desespero".

O sapo Inácio virou a cabeça dos sapos trabalhadores. Eles agora passaram a olhar a cotovia com outros olhos. Não demorou muito e fizeram a revolução (elas sempre acabam vindo). Os sapos trabalhadores pintaram a imagem da cotovia em seus estandartes e marcharam para as barricadas, fazendo o máximo que podiam para, com o seu coaxar, imitar o belo canto daquele amável pássaro. O sapo-chefe Cardosão foi derrubado de seu poder. O poço escuro e úmido tornou-se magnificamente iluminado e ventilado, transformado em um lugar muito melhor para viver. Além disso, os sapos experimentaram um novo e gratificante lazer, acompanhado de muitas delícias dos sentidos - justamente como o sapo-político havia previsto.

Mas a cotovia continuou fazendo visitas ao poço, contando histórias do sol, da lua, das estrelas, de montanhas, vales e oceanos e esplêndidas aventuras vividas nos céus. O sapo-político mais uma vez entra em ação: "Quem sabe esse pássaro não seja mesmo maluco? Já não temos necessidade dessas canções enigmáticas. E, seja como for, é muito cansativo ter de escutar fantasias quando já perderam sua relevância social".

Vai daí, um dia a comunidade de sapos conseguiu capturar a cotovia. Empalharam-na e colocaram-na no recém-construído Museu Cívico da Ética em lugar de honra...