O cuidado de si
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
Fernando
Pessoa
Na obra A Hermenêutica
do Sujeito, Foucault nos convida a pensar na noção do ‘cuidado de si
mesmo’, a qual, para os gregos, designava-se por epiméleia heautoû e, para os latinos, cura sui[1].
Apesar dos múltiplos
sentidos que marcaram a epiméleia heautoû,
três pontos característicos e gerais
devem ser lembrados acerca do cuidado de si: atitude geral, atenção
interior e ação transformadora.
Como atitude geral é uma forma de se relacionar consigo mesmo, com os outros e
com o mundo, um comportamento orientado por uma disposição interior. Como
atenção é um deslocamento do olhar, do foco, do interesse para o si mesmo, um
estado de alerta aos próprios pensamentos. Finalmente como ação, a epiméleia heautoû se refere às práticas,
exercícios ou técnicas pelas quais nos modificamos.
Se nos detivermos no
cuidado de si como técnica que possibilitava o acesso a verdade, ele já estava
disseminado por toda a Grécia arcaica e também em outras culturas, nos ritos de
purificação, imprescindíveis para o contato com o que os Deuses tinham a dizer;
nas técnicas de concentração da alma,
que dada a sua grande mobilidade, evitavam sua dispersão, fixando-a num modo de
existência; no retiro em si mesmo ou
anakhóresis, forma de desligar-se das sensações do mundo exterior; e nas
práticas de resistência, que eram um desdobramento da anakhóresis que possibilitava suportar provações dolorosas e
tentações difíceis.
O pitagorismo, muito
antes de Sócrates, trabalhou com muitas dessas práticas, como na purificação
para o sonho, no qual encontramos práticas preparatórias para o contato com o
mundo divino, mundo da verdade, como se entendia, entrementes, o sonho. Essa
purificação poderia ocorrer mediante músicas, perfumes ou, ainda, pelo exame de consciência. Ao lembrarmos
nossas faltas cometidas durante o dia, delas nos livramos. Outro exemplo são as
técnicas de provação, como aquelas
em que, após praticar uma série extenuante de exercícios, recusa-se uma
refeição farta colocada à nossa frente, e se medita sobre ela.
Sócrates é o
encarregado pelos Deuses de lembrar e incentivar os homens a ocuparem e
cuidarem de si mesmos. Na Apologia de
Sócrates, sabemos por meio de Platão, que ao proclamar o cuidado de si em
Atenas, ele abre mão de uma série de situações consideradas vantajosas, como
fortuna e cargos de poder e que agindo assim, conseguiu despertar, pela
primeira vez, os cidadãos de Atenas de um profundo sono. Portanto o cuidado de
si é a realidade mais admirável, pois proporciona algo equivalente a uma vida
consciente, ativa e desperta.
Como relatado em O
Banquete , Sócrates
dominava a anakhóresis, prática do retiro em si mesmo, bem como a
técnica de resistência. Andava
descalço sobre o gelo com mais facilidade do que faziam seus companheiros
calçados, e podia manter-se imóvel durante todo um dia e uma noite. Tudo isso
parece indicar a sua maestria nas técnicas
do cuidado de si.
O termo “anachóresis”, no contexto das práticas
de si mesmo, significa um ausentar-se do mundo no qual alguém se encontra
imerso, interromper o contato com o mundo exterior, não sentir sensações, não
se preocupar com o que passa à nossa volta, fazer como se não se visse o que
acontece. Uma ausência visível aos outros.
Como uma técnica
complementar da anachóresis era
desenvolvida uma prática conhecida como escritura de si mesmo: os hypomnémata.
Em um sentido técnico,
os hypomnémata podiam ser livros de
contas, registros públicos, cadernos de notas pessoais. Sua utilização como
“livros de vida”, “guias de conduta” era frequente entre o público culto.
Neles, anotavam-se as citações de obras famosas, exemplos de conduta,
reflexões, raciocínios. Eles constituíam a memória material das coisas lidas,
escutadas ou pensadas, um tesouro acumulado para a releitura e a meditação.
Esse material servia para a composição de tratados mais sistemáticos nos quais
se apresentavam os argumentos e os meios para lutar contra um vício ou para
superar os obstáculos e as desgraças da vida.
No Primeiro Alcibíades, vemos, então, surgir, a partir do cuidado de
si duas questões. A primeira diz respeito ao sujeito: o que é o si mesmo? E a segunda: qual é a tékhne para um bom governo? “Qual o eu de que devo ocupar-me a fim
de poder, como convém, ocupar-me com os outros a quem devo governar?” Resumindo
as duas perguntas: o que é o si mesmo, e o que é o cuidado necessário para
governar os outros?
Para responder a essas
questões, seguiremos as analogias de Sócrates, nas quais diferenciamos os
sujeitos e aquilo do qual se servem. Podemos distinguir, na arte da sapataria,
os instrumentos, como o cutelo, e o sapateiro. O mesmo verifica-se na música,
na qual distinguimos a cítara de seu músico. Mas, e quando agitamos a mãos?
Temos aí as mãos e aquele que se serve delas, o sujeito. O corpo não pode
servir-se do corpo, o elemento o qual se serve das mãos, dos olhos, da
linguagem e de todo o corpo só pode ser a alma. Servir-se este que, em grego khrêsthai/khrêsis, indica um
comportamento, uma atitude, relações com os outros e consigo mesmo, mas que não
é instrumental, nem substancial, mas sim transcendente e subjetiva.
Ao concebermos a alma
enquanto sujeito, o cuidado de si passa a distinguir-se em três outros tipos de
atividades. Primeiro, Foucault enuncia o exemplo do médico: quando o médico
adoece e aplica sobre si sua arte médica, podemos dizer que ele se ocupa
consigo mesmo? A resposta é não, pois ele está se ocupando com o corpo, e não
com o si mesmo da alma. A segunda atividade é a economia: quando um
proprietário ocupa-se com suas posses, seus bens e sua família, ele está se
ocupando consigo mesmo? Não, ele está se ocupando com o que é dele, e não
consigo mesmo. Os pretendentes de Alcibíades ocupavam-se com o próprio
Alcibíades? Da mesma forma que nos exemplos anteriores, a resposta é negativa,
haja vista que eles estavam ocupados com a beleza de seu corpo. Na verdade,
quem cuida de Alcibíades é Sócrates, pois apenas ele cuida de sua alma.
Sócrates é muito mais que um professor sofista, é mais que um pedagogo, é o
mestre da epiméleia heuatoû, pois:
Diferente do professor, ele não cuida de ensinar aptidões e
capacidades a quem ele guia, não procura ensiná-lo a falar nem a prevalecer
sobre os outros, etc. O mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem
de si mesmo e que, no amor que tem pelo seu discípulo, encontra a possibilidade
de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio (FOUCAULT, 2004a, p.
73).
Sendo assim: o que é o
‘eu’ com o qual é preciso ocupar-se? A alma. O que é ocupar-se consigo mesmo, o
que é o cuidado de si? É conhecer a si mesmo, gnôthi seautón. Foucault nos diz que o aparecimento dessa
referência ao “conheça a si mesmo”, no Primeiro
Alcibíades, é totalmente diferente de outras duas anteriores. Enquanto a
primeira surge como prudência, para que Alcibíades relacione suas ambições com
suas capacidades, isto é, para que ele perceba suas limitações e a importância
em ocupar-se consigo mesmo; a segunda ressurge para responder quem é o si mesmo
com que se deve ocupar. E, finalmente, agora o gnôthi seautón emerge de maneira direta e decisiva, para dizer que
o cuidado de si é o conhecimento de si mesmo. E este momento afetará toda a
cultura greco-romana. A partir daí, surge a justificativa para que o cuidado de
si, ou seja, para que todas as práticas espirituais, sejam organizadas em torno
do “conheça a ti mesmo”. Apesar disso, em Platão, o conhecimento de si é apenas
um aspecto extremamente importante do cuidado de si, relação esta que será
revertida alguns séculos depois pelo neoplatonismo.
E como devemos nos
conhecer? Para chegar a esta resposta, Sócrates parte do exemplo do olho e do
espelho. Quando nos vemos no olho de alguém, semelhante a nós, vemo-nos a nós
mesmos. Mas este si mesmo que se vê não é graças ao olho, mas à visão, a qual é
também no olho do outro. Para a alma ver-se, é preciso que se volte para um
elemento de sua própria natureza. E qual é a natureza da alma? O pensamento e o
saber. Sendo divinos o pensamento e o saber, a alma deve voltar-se para o
divino, com o fim de conhecer-se a si mesma e receber a sabedoria, sophrosýne. De maneira que, a alma
conhecerá a diferença entre o bem e o mal, entre o verdadeiro e o falso, e
saberá, enfim, governar a cidade.
No final do diálogo,
Alcibíades compromete-se a ocupar-se com a justiça, pois ocupar-se consigo
mesmo ou com a justiça, são equivalentes, já que tudo surgiu a partir da
preocupação em se tornar um bom governante. Infelizmente isto não se deu, e é o
mesmo Alcibíades que, já mais velho, no O
Banquete, lamenta ao dizer que acabou
envolvendo-se com os assuntos políticos de Atenas em vez de cuidar de si mesmo.
A questão
do cuidado de si
implica uma atitude ou
um conjunto
de atitudes , mediante
as quais o sujeito
transforma-se a si
mesmo e que
estão relacionadas a uma conversão do olhar , ou seja, uma mudança
no foco da atenção ,
que se desloca daqueles valores considerados importantes
pela maioria
(ói polloí) em
direção àqueles
que são
cuidados por
poucos (ói prôtoi), tais como a alma , o pensamento e a verdade.
Tal busca, empreendida
por Foucault em vista de um princípio tão antigo, como o cuidado de si, suas técnicas e suas transformações, pode gerar uma grande contribuição para entender o
sujeito moderno, a história da subjetividade e suas práticas e mesmo a educação
como construtora de determinado tipo de sujeito.
"Nossa
vida é o que nossos pensamentos fazem dela".
(MARCO
AURÉLIO, Meditações, IV, 3)
REFERÊNCIAS
Picoli,
Arlindo Rodrigues. Emancipação e cuidado
de si: impactos sobre a pratica educativa desde uma perspectiva foucauldiana. UERJ,
2008.
[1]
Literalmente, cuidado de si. Em
latim, cura refere-se a uma série de
coisas distintas, mas que mantém o sentido de cuidar: cuidado e diligência, mas
também, direção, encargo, administração, cuidados de um doente, tratamento,
trabalho, obra de espírito, obra literária, livro, causa de cuidado,
inquietação, cuidados de amor, tormentos de amor, amor, guarda, guardador,
vigia. (FERREIRA, s.d. p. 315).
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