A questão da verdade, fundamental em Sócrates, nos remete à
parrhêsia socrática. O termo parrésia, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss (2007), significa uma afirmação corajosa ou liberdade oratória, deriva do grego
parrhésía, a liberdade de linguagem, franqueza, traduzida no período cristão pelo latim medieval
parrhésía, uma confissão ou espécie de concessão. Além da palavra parrésia também encontramos em português parresía ou paresía no Dicionário Aurélio. Foucault estudou a fundo a relação entre a filosofia socrática e a parresía, e referiu-se a ela, na primeira hora da aula do dia 15 de fevereiro de 1984, do curso
Lê courage de la vérité no Collège de France como a “prática do dizer verdadeiro no campo da ética” , cabendo a Sócrates fundar a parrhêsia ética em oposição à parrhêsia política, conforme narrado por Platão na Apologia de Sócrates, em que Sócrates prefere a morte a renunciar à palavra verdadeira.
Foucault nos chama a atenção para dois textos. O primeiro na Apologia de Sócrates no qual ele diz que não fez política, não avançou na tribuna, como se dizia, por que assim sendo já teria morrido e o segundo no Fédon, em que Sócrates pronuncia suas últimas palavras, pedindo aos seus discípulos que ofereçam a título de dívida, um galo ao Deus Esculápio , e recomenda fazer este sacrifício acrescentando: não esqueçam
(mê amelêsête).
Tratando-se de num discurso jurídico, de sua defesa, Sócrates inicia a Apologia dizendo que os seus adversários mentiam e que eram hábeis em falar (Apologia 17a), enquanto ele dizia a verdade e falava simples e diretamente. Tão eloqüentes eram eles, que faziam parecer que Sócrates é que era hábil nas palavras. E é nisto justamente que mentiam, e de tão competentes em falar chegaram quase a fazê-lo perder a própria memória e esquecer-se de si mesmo . “
Emaulou epelathomên: eu perdi a memória de mim mesmo” . Em conseqüência disso Foucault, nos remete para uma proposta inversa:
Se a habilidade de falar provoca o esquecimento de si, a simplicidade da fala, a palavra sem preparo ou sem ornamento, a palavra diretamente verdadeira, a palavra, por conseguinte da parrhêsia nos conduziria, ela, à verdade de nós mesmos (FOUCAULT,15/02/1984, 1ª hora, trad. nossa).
Foucault observa que o ciclo da morte de Sócrates comporta a Apologia de Sócrates, sobre o seu processo; o Críton, a respeito de uma possível fuga e o Fédon sobre os últimos momentos de Sócrates.
Foucault comenta o texto da Apologia (31b) em que Sócrates diz como esteve cuidando dos atenienses como um pai ou um irmão mais velho, e também depois (31c) o questionamento a propósito do qual Sócrates não desempenhou um papel de político, por que não se dirigiu ao povo publicamente por meio da tribuna, participando das decisões da cidade?
Sócrates evoca a figura do
parrhêsiasta político, exemplificada na figura de Sólon, grande legislador grego, que apesar dos perigos e ameaças, pensando no interesse da cidade, diz a verdade arriscando-se à morte. No momento em que o jovem Pisistrate pretende exercer a tirania sobre Atenas, criando uma guarda pessoal para si, Sólon vai à assembléia como um simples cidadão, mas armado com uma couraça e um escudo, mostrando assim que Pisistrate considera os cidadãos como inimigos com os quais poderá lutar. A
parrhêsia de Sólon “revela a verdade do que se passa, e ao mesmo tempo dirige um discurso de verdade à assembléia criticando aqueles que não compreendem, mas criticando também os que compreendendo, calam-se” . A reação dos cidadãos do conselho não poderia ser outra e respondem que Sólon deveria estar louco.
Ora, é esta a
parrhêsia que Sócrates não quer praticar, ele não ousa apresentar-se publicamente e dar conselhos ao povo. E não age assim porque atende a uma voz interna de seu gênio, que, segundo Foucault, nunca prescreve algo de positivo, nunca lhe diz é preciso fazer isto, e ocasionalmente lhe aconselha a não fazer determinadas coisas, proibindo o que ele estava a ponto de realizar. Portanto essa voz faz com que ele seja desviado da política.
O mau funcionamento da
parrhêsia democrática, e em geral também da
parrhêsia política, é a explicação para essa pura e simples a proibição, na medida em que há sempre o perigo de morte acompanhando todos os que, generosamente, querem impedir as injustiças e desigualdades na cidade.
Foucault destaca o caráter paradoxal dos exemplos socráticos, que são também refutações, pois Sócrates não aceita e enfrenta esta chantagem em pelo menos dois casos. O primeiro, quando, não por uma decisão sua, mas pelo revezamento das responsabilidades políticas, encontrou-se como
prytane, um dos 50 delegados de cada uma das dez tribos, escolhidos anualmente para formar o Conselho dos Quinhentos, equivalente ao senado na Grécia antiga
, e teve que desafiar a assembléia ensandecida, no julgamento dos generais da batalha das Arginusas, empenhado como estava em fazer cumprir as leis. Apesar dos espartanos terem sido derrotados na batalha das ilhas Arginusas em 406 a. C., devido à tempestade, muitos marinheiros atenienses se afogaram, o que provocou a ira popular:
Com efeito, Antenienses, jamais exerci um cargo público; apenas fiz parte do Conselho. Calhou que a pritania coube a minha tribo, a Antióquida, quando do processo dos dez capitães que deixaram de recolher os mortos da batalha naval; vós os quereis julgar em bloco, o que era ilegal, como todos reconhecestes depois. Naquela ocasião fui o único dos prítanes que me opus a qualquer ação ilegal vossa, votando contra; os oradores estavam prontos a processar-me, a mandar-me prender; vós os incitáveis a isso aos brados. Embora! Achei de meu dever correr perigo ao lado da lei e da justiça, em vez de estar convosco numa decisão injusta, por medo da prisão ou da morte (PLATÃO, Defesa de Sócrates, 32a).
Portanto na democracia, dizer a verdade é arriscar-se a provocar a própria morte e, no entanto, Sócrates enfrentou os riscos desta
parrhêsia.
O segundo caso refere-se ao fim do século V, quando Atenas estava sobre o governo sangrento e autoritário dos Trinta. Eles queriam deter um cidadão que se chamava Leão Salamínio, acusado injustamente. E neste governo oligárquico, diferente do governo democrático, falar a verdade também era muito perigoso.
Doutra feita, após a instauração da oligarquia, fui chamado com outros quatro à Rotunda pelos Trinta e estes nos ordenaram que fôssemos a Salamina buscar o Leão Salamínio para morrer; a muitas outras pessoas eles davam ordens semelhantes, no intuito de comprometer o maior número possível. Nessa ocasião, de novo, por atos, não por palavras, demonstrei que à morte – desculpai a rudeza da expressão – não ligo mais importância que a um figo podre, mas a não cometer nenhuma injustiça ou impiedade, a isso sim dou o máximo valor. A mim, aquele governo, poderoso como era, não conseguiu forçar-me a uma injustiça; ao deixarmos a Rotunda, os quatro seguiram para Salamina e trouxeram Leão, mas eu voltei para casa. Bem podia ter morrido por isso, se aquele governo tardasse a cair (PLATÃO, Defesa de Sócrates, 32c-e).
Foucault se pergunta se esses perigos podem ser a verdadeira razão da abstenção política de Sócrates, e ele mesmo responde: não e sim. Não é por temor a morte que Sócrates faz esta renúncia. E, no entanto pode-se dizer que sim, devido a estes perigos ele se abstém não por temor a morte, mas porque não teria podido ser útil a ele mesmo e aos atenienses: “é esta ligação útil, positiva e benéfica que é a razão pela qual a ameaça que os sistemas políticos fazem pesar sobre a verdade lhe impediu de dizer esta verdade na forma política” .
Esta tarefa, de uma palavra, pois bem o exercício, é um certo exercício, prática da declaração verdadeira, é a aplicação de certo modo de veridicção completamente diferente dos que podem ter lugar sobre a cena política. A voz que dirige à Sócrates esta recomendação, ou antes que desvia Sócrates da possibilidade de falar na forma da política, esta voz marca a instauração, oposta de uma declaração verdadeira política, de outra declaração verdadeira que é a da filosofia: tu não serás Sólon, deves ser Sócrates (FOUCAULT,15/02/1984, 1ª hora, trad. nossa).
.
Foucault localiza alguns momentos na veridicção socrática. O primeiro refere-se à resposta do oráculo de Delfos a questão de seu amigo Xenofonte, que ao perguntar se havia alguém mais sábio que Sócrates recebeu a resposta de que não havia ninguém mais sábio que Sócrates. Mas as respostas dos Deuses são sempre enigmáticas, mesmo assim Sócrates não procura interpretar, decifrar ou adivinhar o significado e inicia uma investigação (
zêtein).
A palavra zêtêsis, vocês encontrarão em [Apologia de Sócrates] 21b. Ele empregou uma investigação, e esta investigação, uma vez mais, não consiste em interpretar, em decifrar, ele não age para fazer uma exegese que o Deus teria podido querer dizer e que teria escondido sob uma forma alegórica ou sob um discurso metade verídico e metade enganoso (FOUCAULT,15/02/1984, 1ª hora, trad. nossa).
Foucault diz que Sócrates quer primeiramente fazer a veridicção, a prova do que disse o oráculo. Para isto emprega a palavra
elegkhein, ou seja, fazer objeções, questionar, interrogar, apresentar à oposição para saber se é verdadeiro, discutir o que foi dito. Realiza assim um percurso para saber se a profecia é indiscutível (anelegktos). Portanto, a atitude socrática não é muito comum, em geral se procurava interpretar para compreender o mais precisamente possível o que o oráculo disse, ou então, se esperava para saber se o que foi dito realmente seria realizado. Outra possibilidade ocorria quando o que era dito não era bom, e por causa disso, tentava-se evitar sua realização.Em segundo lugar, Sócrates realiza um percurso pela cidade, verificando o que as pessoas diziam saber, para realizar o inquérito da palavra misteriosa do oráculo. Sócrates comprova que os que pareciam saber mais, na verdade nada sabiam e os artesões, que poderiam nada saber, sabem sobre muitos assuntos, inclusive mais que o próprio Sócrates. O que ocorre é que, enquanto os homens de Estado se mostram ignorantes e os artesãos, doutos, o que havia de comum entre eles é que crêem conhecer algo enquanto Sócrates sabe que não sabe. E “este inquérito, esta aposta na pergunta, este questionamento, este exame dos outros em comparação com si mesmo que Sócrates chama neste texto o
exetasis,
exetazein que é submeter ao exame” .
E para terminar, estes exames acabam por lançar sobre Sócrates as hostilidades, especialmente as acusações que o levaram ao julgamento descrito na Apologia de Sócrates.
Portanto verificar o que disse o oráculo consiste em provar as almas dos que sabem e dos não sabem, de suas atividades e ofícios, mas também à propósito delas mesmas e para confrontar suas almas com a própria alma de Sócrates. Esta forma de declaração verdadeira, veridicção, é a
parrhêsia. Esclarece Foucault, “se entende-se por parrhêsia a coragem da verdade, se entende-se a coragem de declaração verdadeira ”.
Este nova parrhêsia será exercida por Sócrates de uma maneira muito específica, como uma missão que ele não abandona nunca. Ao contrário de um sábio, como Sólon, que intervém em caso de urgência e depois se cala, Sócrates é um soldado e deve ocupar-se dos outros constantemente. E ocupando-se assim, deve incentivá-los a ocuparem-se não de suas fortunas e honras, mas deles mesmos e, complementa o texto da apologia, da razão, da verdade e da alma (
phonesis, alêtheia, psukhê). Portanto esta parrhêsia socrática tem outro objetivo, diferente da parrhêsia política,
[...] com efeito, fazer de modo que as pessoas se ocupem delas mesmas, cada um, cada indivíduo se ocupa de si, de si como ser razoável, tendo, com a verdade, uma relação que é fundada sobre o ser mesmo da sua alma. E aqui está aquilo que ele tem agora uma parrhêsia que é uma parrhêsia sobre o eixo da ética (FOUCAULT,15/02/1984, 1ª hora, trad. nossa).
A veridicção política não visa o cuidado de si, mas diz o que é que deve ser feito, retirando-se em seguida. Ao proibir Sócrates de falar publicamente na tribuna, o daimónion socrático traça uma linha divisória entre a
parrhêsia política e a
parrhêsia ética. Contudo ambas são igualmente perigosas, como bem mostrou a sua condenação pela assembléia de Atenas.
É interessante também tentar analisar a prática da veridicção. Foucault cita quatro grandes formas de declaração verdadeira: a veridicção do profeta, do sábio, do professor ou do técnico e a veridicção do
parrêsiasta, que acabamos de descrever. Todas as outras três formas encontram-se também presentes na Apologia de Sócrates e são bem marcadas as diferenças entre elas:
A veridicção profética iniciou Sócrates em sua missão, na medida em que ele teve que realizar uma investigação, um inquérito da verdade desta palavra divina, portanto toda a nova
parrhêsia é parte neste discurso profético.
A veridicção do sábio, a referência a esta declaração verdadeira encontra-se na passagem em que Sócrates recorda a acusação da qual foi objeto, acusação esta anterior a que o arrastou ao julgamento, e consistia em dizer que Sócrates era ímpio, e que cometia um delito (
adikein) porque procurava (
zêtein) conhecer o que se passava no céu e sob a terra, a ponto de tornar mais forte o discurso mais fraco (Apologia de Sócrates 18b). Para Foucault, ele quer mostrar que o que ele fez, contrariamente as acusações recebidas, é completamente diferente da zêtêsis, da procura do que se passa no céu ou na terra. Sócrates nunca falava de fatos da ordem do mundo, pois disso tratavam os sábios, pelo contrário é da alma e da verdade da alma a
zêtêsis, a investigação, que ele se propunha.
A veridicção dos que possuem técnicas e são capazes de ensinar (
didaskein). Sócrates rebate a acusação de que tentava ensinar, pois não era como os sofistas, Górgias, Pródicos ou Hípias, que vendem seu saber por dinheiro e que, portanto são professores tradicionais. Sócrates não transmite o que sabe aos outros, pelo contrário o que ele faz é, corajosamente, mostrar aos outros que eles não sabem e que necessitam ocuparem-se consigo mesmos, exortando todos ao cuidado de si.
Assim, Sócrates além de distinguir radicalmente sua declaração verdadeira das demais, mostra como a coragem é necessária na
parrhêsia, e que esta coragem deve ser realizada não na cena da retórica política, mas na prova da alma, como
parrhêsia ética.
Foucault marca como emergência fundamental neste discurso, corajoso e filosófico, a relação entre os Deuses, a verdade e os outros, e o que atravessa todo o ciclo de morte socrático é a preocupação pelo cuidado de si.
Retornando às últimas palavras de Sócrates no Fédon de Platão, Foucault diz que elas permaneceram como um enigma, um pequeno buraco na história da filosofia: “a última palavra do que fundou mesmo assim a filosofia ocidental, esta última palavra permaneceu sem explicação, na sua estranha banalidade" FOUCAULT, 15/02/1984, 2ª hora, trad. nossa):
Sócrates já se tinha tornado rijo e frio em quase toda a região inferior do ventre, quando descobriu sua face, que havia velado, e disse estas palavras, as derradeiras [oi de teleutaion telextaton] que pronunciou − Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças [alla apototê kai mê amelêsête] de pagar essa dívida (PLATÃO, Fédon 118a).
Muitas explicações para as últimas palavras de Sócrates concordavam que ele queria oferecer um presente ao Deus por ter sido libertado desta doença, deste mal que é a vida, como se ele tivesse sido curado da própria vida. Entretanto Foucault discorda disso e diz que em muitos textos platônicos é dito claramente que a vida não é uma doença, e mais precisamente no Fédon a respeito do suicídio:
[...] A esse respeito há, mesmo, uma fórmula que usam os adeptos dos Mistérios: “É uma espécie de prisão [phroura] o lugar onde nós, homens, vivemos, e é dever não libertar-se a si mesmo nem evadir-se”. Fórmula essa, sem dúvida, que me parece tão grandiosa quão pouco transparente! Mas não é menos exato, Cebes, que aí se encontra justamente expresso, creio, o seguinte: os Deuses são aqueles sob cuja guarda estamos, e nós, homens, somos uma parte da propriedade dos Deuses. [...] não havias de querer mal a um ser de tua propriedade que se matasse sem que tal lhe tivesse permitido? E não tirarias de seu ato a vingança que fosses capaz de tirar? [...] é provável, portanto, que neste sentido nada exista de irracional no devir de não nos matarmos, de aguardarmos que a divindade envie qualquer ordem semelhante àquela que hoje se apresenta para mim (PLATÃO, Fédon, 62b).
Sobre esta passagem do Fédon, Foucault levanta a dificuldade da tradução de
phroura, que costuma ser traduzido por prisão, mas também pode ser cerco, creche, posto militar de vigilância; o que importa mesmo é que o aforismo pitagórico é, de fato, misterioso e difícil de decifrar. Foucault assim o entende: “é que os Deuses se ocupam de nós (
epimeleisthai), têm cuidado conosco, têm cuidado de nós, têm solicitude para nós e que somos
ktêmata deles, a possessão deles ou mais provavelmente a sua manada” (FOUCAULT,15/02/1984, 2ª hora, trad. nossa).
Para Foucault o objeto de preocupação é a solicitude dos Deuses, a proteção, a guarda deles, além disso, epimeleia, epimelesthai, designam sempre atividades positivas, e é da benevolência e da solicitude dos Deuses que não podemos escapar, portanto não é a uma prisão que o texto se refere.
Na Apologia de Sócrates, Foucault localiza outro texto para refutar a tese da vida como uma doença: “[...] não há para o homem bom, nenhum mal, quer na vida, quer na morte, e os Deuses não descuidam de seu destino” (Platão, 1972, 33):
oude ameleitai hupo theôn ta toutou pragmata, cuja tradução para o português é: “os Deuses não descuidam de seu destino”, portanto novamente voltamos ao tema do cuidado de si.
Mas qual é esta doença que Crítias estava tão informado a ponto de Sócrates dirigir a ele suas últimas palavras? Sabemos que Crítias propôs a Sócrates que fugisse. Para convencê-lo a fazer isto, ele lhe disse que se não escapasse estaria traindo primeiramente a si mesmo; em segundo lugar, trairia também suas crianças que ficariam desamparadas, e em terceiro lugar os seus amigos, pois poderiam ser acusados de não terem tentado tudo, por todos os meios, para salvar a vida de Sócrates. Eles seriam desonrados na frente da opinião pública. Sócrates mostra que não é concebível seguir cegamente a opinião dos outros. Assim, por exemplo, para cuidar do corpo, devemos seguir a opinião dos que mais o conhecem, como os mestres da ginástica, e não a de todos, pois, o que se seguira seria um mau regime e lançaria sobre o corpo milhares de males. Agindo assim só iríamos degradar, deteriorar e destruir (
diephtarmenou) o corpo.
E se a respeito do bem e do mal, da justiça e da injustiça, seguirmos a opinião dos que não sabem nem a sua diferença, estaremos corrompendo (
diephtarmenon) a alma. E para evitar o mal da alma é necessário seguir a verdade e não a multidão. Tem-se aqui o que Foucault indica ser o objeto da cura a que Sócrates se refere com seu sacrifício ao Deus Asclépio.
E certamente esta doença não deve tratar-se por meios médicos. Mas se é verdade que ela é produzida pela opinião falsa, a opinião de todos e não importa que, esta é a opinião armada pela alêtheia, isto é o logos razoável, o que precisamente caracteriza a phronêsis, é que este logos é que será capaz de impedir esta corrupção, ou de fazer retornar a alma de seu estado de corrupção a um estado de saúde (FOUCAULT, 15/02/1984, 2ª hora, trad. nossa).
Para reforçar essa hipótese, Foucault cita Dumézil ao indicar dois textos em que fica claro que a opinião falsa é designada pelo nome de
nosos (doença): A
Antígona de Sófocles e o
Agamenon de Eurípedes. E, é exatamente Crítias que foi curado ao decidir por uma opinião verdadeira fundada na relação de si mesmo com a verdade, afastando-se do que pensava a multidão.
Em outras partes do Fédon (89a) fica mais claro ainda que uma opinião falsa, mal estabelecida, mal examinada, é designada com um mal que é necessário curar. Pois bem, a propósito de uma discussão sobre a imortalidade da alma, Sócrates avança sobre duas objeções, de Cebes e de Símias. Símias argumenta que:
[...] a alma não é simplesmente uma harmonia, como a harmonia por exemplo de uma lira, de modo que da mesma maneira que quando a lira é quebrada, a harmonia desfaz-se e não existe mais, quando o corpo se desfaz e morre, a alma poderia bem morrer com ele, como a harmonia morre com o instrumento de música quebrado (FOUCAULT, 15/02/1984, 2ª hora, trad. nossa).
Conforme as palavras de Foucault, o argumento que Cebes usa é:
[...] bem pode a alma subsistir realmente após o corpo, mas pode-se disto inferir que a alma é imortal? Não se pode simplesmente supor que vive mais muito tempo que o corpo, e que se serve sucessivamente de vários corpos, mas que ela se gasta gastando diversos corpos? E seria necessário comparar ligeiramente a alma a um ser vivo que gasta diversos roupas, vestuários. Mas o uso dos vestuários não impede que ele se gaste também e que ele morra um dia (FOUCAULT, 15/02/1984, 2ª hora, trad. nossa).
E em outra passagem do Fédon, é o próprio Fédon que diz o quanto se admirou da maneira que compreendeu quanto ele e outros discípulos de Sócrates examinaram melhor seus argumentos, como que os curando (
iasatô) de uma falsa opinião:
− Em verdade, Equécrates, muitas vezes me maravilhei diante de Sócrates, mas confesso que nunca senti tanta admiração por ele como naquelas horas finais em que estive a seu lado. Que um homem como ele fosse capaz de responder, é coisa que nada tem de extraordinário. Mas o que achei maravilhoso de sua parte foi antes de tudo o bom humor, a bondade, o ar interessado com que acolhia as objeções daqueles moços e, além disso, a finura com que percebeu e soube avaliar o efeito que sobre nós tinham produzido as suas objeções. E, enfim como nos soube curar (PLATÃO, Fédon 89a).
E também um pouco antes, a propósito da discussão sobre o logos e dos perigos que lhe são próprios:
[...] tomemos cuidado para que não venha a penetrar em nossas almas o pensamento de que nos argumentos nada há de razoável. Suponhamos sempre, ao contrário, que nós é que não temos ainda bastante discernimento. Devemos, com efeito, ser corajosos fazer tudo o que for necessário para obter os conhecimentos verdadeiros – tu e os outros, porque ainda vivereis bastante, eu simplesmente porque vou morrer. Pois estou exposto, visto se trata apenas da morte, a não me comportar como filósofo mais sim à maneira dos homens completamente iletrados, que só pensam em levar a melhor. Repara quando discutem um problema: não se preocupam em absoluto com obter a solução certa, mas o que desejam é unicamente conseguir que todos os ouvintes estejam de acordo com eles. É isso que querem; entretanto, creio que me distingo desses argumentadores pelo menos num ponto: não pretendo convencer os ouvintes de que é verdadeiro tudo o que eu disser – embora o deseje secundariamente – mas em primeiro lugar desejo persuadir-me a mim mesmo, disso. Penso, pois, caro amigo, como um egoísta. Se é verdade o que digo, então é bom estar convencido; se, pelo contrário, não há esperança para quem morre, eu, pelo menos, não terei tornado meus últimos instantes desagradáveis para meus amigos, obrigando-os a suportar minhas lamentações. De resto, não terei muito tempo para meditar nisso (o que seria efetivamente desagradável). Mais um pouco e logo tudo estará acabado. Assim, preparado com esse espírito, Símias e Cebes, entro na discussão. Vós entretanto, se me acreditais, cuidai menos de Sócrates que da verdade (PLATÃO, Fédon 90e)!
O raciocínio pode conduzir à erros, mas é completamente falso crer que ele não tem nada de são, é necessário antes crer que se nós não o levamos devidamente bem, não seremos saudáveis (
hupo êgiôs êkhomen), portanto ele recomenda que todos devem se conduzir bem, eles, para a vida que terão e o próprio Sócrates, devido a morte. Quando nos deixamos invadir pelo raciocínio falso, nós é que não estamos em boa saúde, e, portanto precisamos nos curar. Entre os seguidores de Sócrates, havia uma relação de simpatia e de amizade de tal forma que quando um deles "adoecia", os outros igualmente sofriam. Portanto, o risco de ser atingido por uma opinião falsa afeta todos eles. Se o mal discurso triunfa, é uma derrota para todos. Assim, se Sócrates mostrou a importância disto tudo para seus discípulos, curando-os, ele também foi curado e deve agradecer ao Deus. A cura necessária é obtida ao ocupar-se de si mesmo. A atividade da
epimileia (cuidado) pode tomar, em diversos casos, a forma mais urgente, mais intensa e necessária, e estes casos, ocorrem precisamente quando uma opinião falsa corre o risco de deteriorar e tornar a alma doente. Esta doença que só pode ser curada quando se é capaz de ter a solicitude para consigo mesmo, e é isto que nos faz saber que nossa alma está ligada à verdade. E para isto não podemos esquecer deste Deus que nos ajuda a nos curar quando cuidamos de nós mesmos.
Portanto, para Foucault, coube à filosofia fundar na realidade do pensamento grego, e conseqüentemente na história da filosofia ocidental, uma forma inédita de
parrhêsia , pois:
[...] a filosofia como uma forma de veridicção que não é nem a da profecia, nem a da sabedoria, nem a do technè, forma de veridicção que é própria precisamente do discurso filosófico e cuja coragem deve se exercer até à morte como uma prova da alma que não pode ter o seu lugar sobre a tribuna política (FOUCAULT, 15/02/1984, 2ª hora, trad. nossa).
Na Hermenêutica do Sujeito há uma passagem bastante esclarecedora e que ajuda a pensar na inadequação da
parrhêsia à política e na atitude de liberdade de quem fala. É muito mais importante a declaração verdadeira do que se experimenta, do que a forma como se dizem as coisas. Definitivamente, o discurso político pelo seu caráter de retórica, persuasão e alegoria é incompatível com a
parrhêsia:
Creio que o fundamento da parrhesía seja esta adoequatio entre o sujeito que fala e diz a verdade e o sujeito que se conduz como esta verdade requer. Bem mais do que a necessidade de se adaptar taticamente ao outro, a meu ver o que caracteriza a parrhesía, a libertas, é esta adequação do sujeito que fala ou do sujeito da enunciação com o sujeito da conduta. É esta adequação que confere o direito e a possibilidade de falar fora das formas recomendadas e tradicionais, de falar independentemente dos recursos da retórica que, se preciso for, podem ser utilizados para facilitar a recepção daquilo que se diz (FOUCAULT, 2004b, p. 491-2).
A parrhêsia , apesar de ser um discurso que se adapta ao ouvinte, é muito mais um comprometimento, um pacto entre o que é dito e a própria conduta de quem fala. Por ser um elo entre o que se diz e o que se faz, ela pressupõe o modelo exemplar (
exemplum) (FOUCAULT, 2004a, p. 492).
Em sua análise da parrhêsia Foucault distingue a transmissão pedagógica, na qual a verdade dota o sujeito de aptidões, capacidades e saberes, da transmissão ‘psicagógica’, onde a função é provocar uma mudança no modo de ser do sujeito (FOUCAULT, 2004a, p. 493). Sem dúvida, isto abre a possibilidade de pensarmos uma novo tipo de educação parrêsiasta, não só transmissora de habilidades e competências, mas principalmente transformadora de professores e alunos e que exigiria muita coragem de todos nós.
Apesar da dificuldade que Sócrates enfrentou com a política de seu tempo, é nosso papel como cidadãos responsáveis que somos não só pela escolha, mas também pelo acompanhamento e conduta dos políticos, acrescentar mais um item a ser perseguido por todo plano de governo. Ao lado da saúde, educação, segurança, trabalho, é preciso transformar também a política em ambiente propício a coragem da verdade.
FOUCAULT, Michel. Lê courage de la vérité. (Aulas de 15 e 29 de fevereiro). Paris: Collège de France, 1984b, mimeo.
PLATÃO.Fédon. São Paulo: Abril, 1972b. Coleção “Os Pensadores”.
_______. Defesa de Sócrates. São Paulo: Abril, 1972c. Coleção “Os Pensadores”.