quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O que é o poder: pensar com Foucault



O que é o poder: pensar com Foucault
Alípio de Souza / Depto. Ciências Sociais / UFRN
Transcrição adaptada do programa Café Filosófico exibido pela TV Universitária - UFRN
A positividade do poder
Foucault constrói seu pensamento opondo-se a duas concepções correntes sobre o poder. Uma seria o poder enquanto contrato, encontrada nos filósofos do século XVIII, e outra seria a concepção do poder enquanto aparelho de repressão. Concepções que influenciaram desde liberais até marxistas, as quais ele contrapõe outras ideias.
A primeira delas e a mais essencial é procurar demonstrar que o poder se constitui de um conjunto de dispositivos de sujeição, que são ao mesmo tempo dispositivos de produção dos indivíduos. Analisando as sociedades ocidentais modernas, nós indivíduos somos fabricados pelo poder e nisso não há nenhum mistério. Quando pensa os indivíduos fabricados pelo poder, ele está simplesmente apontando a existência de experiências ou de espaços como a família, a escola, as igrejas, ciências, diversas sócio-técnicas existentes na nossa sociedade, como dispositivos de poder, dispositivos de produção dos indivíduos. Por que pensar esses espaços em instâncias como poder? Por que esses são espaços e experiências de produção de subjetivação na sujeição. O poder é isso: modos de subjetivação que são sempre já, controle, domesticação, fabricação de corpos, atos, pensamentos. Assim em Foucault, nós poderíamos dizer que o poder existe como uma maquinaria sem maquinista.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjdaegdtb_YH7rBAHKa_xP52qnAyn080kLLqf6iuoBB6qytXD_kT-FKyXOAQ8mBW2O1t10g7bWiWs1O7T0PagOPZi-oz8vYqdS_3K-FbSYqsVT76FGLI-HBde5yQRa8U1bWWKalrdwe7jg/s1600/Latuff+f%C3%A1brica.jpgÉ bastante conhecida, quase um clichê quando se fala de Foucault, dizer que tratando-se de pensar o poder, convém não pensá-lo enquanto alguma coisa que se poder dizer dele, como alguém o tem ou que não o tem, ou seja,  o poder não é alguma coisa que se possa dizer ser um bem,  ou  um objeto fixo, nem é uma realidade da qual possa se dizer eu tenho o poder ou eu não tenho o poder. Em termos foucaultianos isso não faz o menor sentido, porque o poder não é uma coisa, não é um objeto fixo. O poder é um exercício de múltiplas sujeições.
O poder é pensado então, como um conjunto de dispositivos em constante funcionamento, é algo que funciona em rede, é algo como um exercício de sujeições contínuas multiplicadas, é alguma coisa que circula, é alguma coisa que se faz existir enquanto práticas. Portanto é uma realidade que não pode ser pensada em algo que tem um centro, que tem um topo, uma realidade física, uma sede. E é isso que aparece nas concepções as quais ele se opõe, tanto na tradição liberal como na marxista, a ideia do poder como um objeto, como algo fixo, seja na teoria do contrato ou do poder enquanto repressão. Nesse sentido a melhor imagem para pensar o poder em Foucault é aquela em que ele diz que o poder não deve ser pensado olhando-se para o Rei, para o topo, mas sim para as realidades que constituem os súditos.
Portanto, sempre temos a ideia de que o poder deve ser entendido como esse conjunto de mecanismos, que produzindo, fabricando os indivíduos se espalha na sociedade enquanto uma rede de práticas, saberes constitutivos disso que vamos chamar a realidade do indivíduo. Dessa maneira Foucault torna possível pensar o poder sem seus fundamentos econômicos, e sem a sua relação com as classes sociais, isso que é algo bastante próprio do pensamento dele, e que de fato produz aí todo um diálogo, crítico e bastante tenso com as correntes marxistas. Para Foucault o poder necessariamente não vai atender a um princípio econômico.
Em primeiro lugar o poder se faz existir como um saber e como uma técnica de fabricação de indivíduos sujeitos a disciplinas. Disciplinas do pensamento, dos hábitos, da sexualidade, do desejo. E por isso mesmo; e aí fazendo lembrar o antigo instrumento de cordas ou correias que os monges se aplicavam nos mosteiros que eram as disciplinas, o chicote, o suplício dos penitentes; Foucault resgata essa semântica desse instrumento e vai chamar de poder disciplinar o poder nas sociedades modernas, pensando nesse poder como aquele que procura reger a multiplicidade dos indivíduos na medida em que essa multiplicidade pode ser padronizada, homogeneizada, ser reduzida a um padrão, a um modelo, aquele que procura a sociedade, mas sem que isso implique em um esvaziamento daquilo que seria o corpo individual.
Para Foucault a produção do indivíduo pelo poder disciplinar é a produção de corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, e só eventualmente punidos, como se sabe uma das teses que Foucault mais critica é a ideia de que o poder é uma potência repressiva, que representaria a potência do não, da negação. Ele chama isso de hipótese repressiva e em oposição a ela é preciso pensar que o poder tem uma positividade, que não deve ser confundido com o lado bom ou positivo do poder. Oposta à ideia do poder enquanto repressão ele vai dizer que o poder tem uma positividade que está no fato de que ele produz, ele cria, ele engendra, ele fabrica.
Agimos agidos pelo poder
O poder não é o que impede, o poder é o que impele. Impele o indivíduo a agir, impele o indivíduo a pensar. Só que, impele o indivíduo a agir, mas agir na sujeição. Então, dessa maneira, podemos dizer que o poder é capaz de fazer com que ajamos agidos. Agimos agidos pelo poder, mas sem consciência disso, daí o fato de que agimos na ilusão de que somos livres, pensando que temos nossas próprias ideias, nossas próprias opiniões, quando de fato, agimos agidos porque somos fabricados, produzidos pelo poder. Nós agimos em conformidade com aquilo que o poder produz em nós, seja em nossos pensamentos, seja em nossos atos. Isso faz com que nessa reflexão se torne possível dizer que o fato de agir agidos pelo poder, sem ter consciência disso, faz com que enquanto indivíduos sociais, tornemo-nos cúmplices.
Esse sempre foi o projeto intelectual de Michel Foucault, em todo seu vasto programa de pesquisas, estava sempre presente a ideia de denunciar o fato da dominação, que se esconde nas múltiplas sujeições, nos múltiplos exercícios dissimulados da domesticação social. Foucault fazia aparecer a ideia de que o fato bruto da dominação, que se oculta justamente nesses vários espaços, vários saberes que circulam na sociedade, não aparecem enquanto práticas de sujeição e dominação, mas que de fato é o exercício que se dá, o exercício da sujeição dos indivíduos.
Foucault então na sua vasta obra vai fazer aparecer diversos exemplos, o nascimento das diversas instituições de saberes, no campo médico, no campo da educação, da política, da administração, e todas essas experiências como traduzindo a invenção social, histórica, de mecanismos de poder multiplicados, mas sem uma coordenação única, e sem uma estratégia prévia.
Não se trata mais de pensar o poder enquanto uma coisa que tem uma estratégia única ou pensada para a dominação dos indivíduos. Essa é a ideia da maquinaria sem maquinista. Portanto não há uma coordenação única e não há uma estratégia prévia. O poder nasce justamente da invenção, do aparecimento, desses espaços, desses saberes, dessas técnicas que vão, enquanto tais, se ocupando de produzir os indivíduos, de produzir subjetivação na sujeição, isso é que é o poder. Portanto, em termos foucaultianos, o melhor é evitar o singular e não falar mais de poder e sim de poderes.
Oposição ao poder
Coerente com essas ideias Foucault vai formular, no campo já de uma resposta política-epistemológica dessa reflexão, a ideia de que se o poder tem essas características, aquilo que pode se opor a ele deverá ter também características correspondentes. Isto é, tratando-se de pensar lutas de emancipação, enfrentamentos do poder, a perspectiva agora não é mais a perspectiva de uma luta única, de um enfrentamento único, mas agora de um enfrentamento multiplicado, diversificado, em conformidade com essa natureza do poder que é essa natureza diversificada, ramificada, multiplicada, no corpo social inteiro.
Daí que ele vai pensar essas formas multiplicadas de enfrentamento ao poder, ele vai chamar de lutas pontuais, lutas específicas, que são lutas de crítica e resistência. No pensamento de Foucault entra em colapso a ideia de revolução, como pensada pelo pensamento marxista, como um enfrentamento único, como superação de um poder, para o estabelecimento de uma nova realidade.
Não é possível pensar essa revolução proletária onde se pensa a tomada do poder, primeiro porque não há poder nenhum a tomar, porque o poder não tem sede única, sede fixa, não é um objeto, não é uma coisa que se possa dizer não tenho o poder, então vou tomar o poder, um individuo, uma classe ou um grupo. 
Em segundo lugar, pensar os indivíduos enquanto fabricados pelo poder, faz cair por terra também a ideia de um proletariado ou uma classe, que seria potencialmente revolucionária. Temos aí que os poderes produzindo os indivíduos na sujeição, na domesticação, serão indivíduos fabricados na desmobilização para os enfrentamentos com o poder. O efeito mais poderoso dessa maquinaria do poder na sociedade é que os indivíduos serão socialmente úteis e politicamente dóceis, portanto aí ocorre a inexistência de uma classe potencialmente revolucionária.
Foucault apresenta uma ideia bastante consistente que é que aquela de que o que nós podemos fazer se desejamos mudanças sociais o que nos resta é oferecer enquanto pontos de resistência à dominação. Isso quer dizer primeiro uma mudança de si, e junto disso o engajamento em lutas específicas, pontuais, que são as lutas que de alguma forma Foucault passou a ser uns dos inspiradores, senão em alguns casos, quase um guru: a luta das mulheres, a luta de minorias étnicas, a luta dos homossexuais, dos estudantes, e mesmo de setores das classes trabalhadores. Mas sempre com essa ideia de que esses são enfrentamentos parciais, são enfrentamentos sem vitória.
Onde há poder há resistência
Uma ideia também muito forte que esta nas reflexões de Foucault pelo poder é a de que onde há poder, há resistências, mas a resistência sempre como aquilo que podemos oferecer enquanto indivíduos produzidos pelo poder, numa perspectiva agonística, enquanto arte da luta. Portanto os enfrentamentos do poder enquanto alguma coisa que, sem vitória de nenhum lado, se produz como arte da luta. Não há vitória, a possibilidade é de resistir, de oferecer resistências é de fazer a crítica, é de multiplicar as formas de resistência e crítica a essa realidade do poder que multiplica suas formas, que se renova em constância, em permanência, que não se fixa em ponto algum, que não tem sede única, que não tem um titular único.
Dessa maneira, se abre uma ideia nova em certo sentido, e ela sim verdadeiramente revolucionária porque tem esse potencial de criticidade, por nos chamar a atenção da importância de nos oferecer enquanto pontos de resistência à dominação na vida cotidiana. Importante chamar a atenção para a  lucidez e o alcance profundo que tem essa perspectiva de Foucault, porque nos tira da ilusão moderna que o campo teórico-filosófico nos colocou, seja na tradição liberal, seja na tradição marxista, que é pensar a relação com o poder como alguma coisa exterior a nós próprios.
Enquanto tenho uma relação de exterioridade, então posso falar do poder como alguma coisa que está longe de mim, e dessa forma, também vivendo a ilusão de que o poder não me concerne. Ora, a reflexão é lúcida por colocar os termos de uma outra maneira, ora o poder concerne a cada um de nós, no sentido de que somos fabricados por ele. Agindo agidos pelo poder, nossos atos, nossos pensamentos, são atos, são pensamentos de poder; agindo sobre o outro, na relação com o outro, eu também exerço o poder. Lucidez porque na própria formulação foucaultiana, ele diz que convém pensar o poder não como uma coisa muito longe, aquela imagem, na teoria da soberania como o poder que está na sede do palácio, o poder se confunde com o governante, com o aparelho de repressão do Estado.
Ora olhando mais de perto, o poder me atravessa, me concerne muito diretamente, como penso, como ajo, posso, em geral é o caso; agir, pensar, exercer o poder, e é sempre esse o caso. E de alcance profundo porque essa não me parece uma reflexão que se limite ao caso das sociedades burguesas modernas, essa não é uma reflexão que se limitaria ao caso das sociedades capitalistas, como alguns chegam a querer acreditar. Na reflexão de Foucault se põe o entendimento do poder enquanto um fenômeno que está presente onde exista vida social e coletiva.
Para finalizar, esse é um pensamento que, não sem razão, foi tomado como uma inspiração forte para diversos movimentos de emancipação nos diversos países, as lutas que ele já chamava de lutas específicas, ou lutas pontuais. Trata-se de uma reflexão capaz de orientar lutas, cujo objetivo não é uma vitória final sobre nada, mas desse enfrentamento agonístico, onde o que se pode é oferecer resistência e crítica. Daí sua atualidade, sua permanência entre nós como um pensamento de grande importância nesse campo mesmo da formulação de ideias críticas de enfrentamento à maquinaria do enfrentamento do poder que nos produz que nos fabrica. 

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