O que é o poder: pensar
com Foucault
Alípio de Souza / Depto. Ciências
Sociais / UFRN
Transcrição adaptada do programa
Café Filosófico exibido pela TV Universitária - UFRN
A positividade do poder
Foucault constrói seu pensamento
opondo-se a duas concepções correntes sobre o poder. Uma seria o poder enquanto
contrato, encontrada nos filósofos do século XVIII, e outra seria a concepção
do poder enquanto aparelho de repressão. Concepções que influenciaram desde liberais
até marxistas, as quais ele contrapõe outras ideias.
A primeira delas e a mais
essencial é procurar demonstrar que o poder se constitui de um conjunto de
dispositivos de sujeição, que são ao mesmo tempo dispositivos de produção dos
indivíduos. Analisando as sociedades ocidentais modernas, nós indivíduos somos
fabricados pelo poder e nisso não há nenhum mistério. Quando pensa os
indivíduos fabricados pelo poder, ele está simplesmente apontando a existência
de experiências ou de espaços como a família, a escola, as igrejas, ciências,
diversas sócio-técnicas existentes na nossa sociedade, como dispositivos de poder,
dispositivos de produção dos indivíduos. Por que pensar esses espaços em
instâncias como poder? Por que esses são espaços e experiências de produção de
subjetivação na sujeição. O poder é isso: modos de subjetivação que são sempre
já, controle, domesticação, fabricação de corpos, atos, pensamentos. Assim em
Foucault, nós poderíamos dizer que o poder existe como uma maquinaria sem
maquinista.
É bastante conhecida, quase um clichê
quando se fala de Foucault, dizer que tratando-se de pensar o poder, convém não
pensá-lo enquanto alguma coisa que se poder dizer dele, como alguém o tem ou
que não o tem, ou seja, o poder não é alguma
coisa que se possa dizer ser um bem, ou um objeto fixo, nem é uma realidade da qual
possa se dizer eu tenho o poder ou eu não tenho o poder. Em termos
foucaultianos isso não faz o menor sentido, porque o poder não é uma coisa, não
é um objeto fixo. O poder é um exercício de múltiplas sujeições.
O poder é pensado então, como um
conjunto de dispositivos em constante funcionamento, é algo que funciona em
rede, é algo como um exercício de sujeições contínuas multiplicadas, é alguma
coisa que circula, é alguma coisa que se faz existir enquanto práticas.
Portanto é uma realidade que não pode ser pensada em algo que tem um centro,
que tem um topo, uma realidade física, uma sede. E é isso que aparece nas
concepções as quais ele se opõe, tanto na tradição liberal como na marxista, a
ideia do poder como um objeto, como algo fixo, seja na teoria do contrato ou do
poder enquanto repressão. Nesse sentido a melhor imagem para pensar o poder em
Foucault é aquela em que ele diz que o poder não deve ser pensado olhando-se para
o Rei, para o topo, mas sim para as realidades que constituem os súditos.
Portanto, sempre temos a ideia de
que o poder deve ser entendido como esse conjunto de mecanismos, que
produzindo, fabricando os indivíduos se espalha na sociedade enquanto uma rede
de práticas, saberes constitutivos disso que vamos chamar a realidade do
indivíduo. Dessa maneira Foucault torna possível pensar o poder sem seus
fundamentos econômicos, e sem a sua relação com as classes sociais, isso que é
algo bastante próprio do pensamento dele, e que de fato produz aí todo um
diálogo, crítico e bastante tenso com as correntes marxistas. Para Foucault o
poder necessariamente não vai atender a um princípio econômico.
Em primeiro lugar o poder se faz
existir como um saber e como uma técnica de fabricação de indivíduos sujeitos a
disciplinas. Disciplinas do pensamento, dos hábitos, da sexualidade, do desejo.
E por isso mesmo; e aí fazendo lembrar o antigo instrumento de cordas ou
correias que os monges se aplicavam nos mosteiros que eram as disciplinas, o
chicote, o suplício dos penitentes; Foucault resgata essa semântica desse
instrumento e vai chamar de poder disciplinar o poder nas sociedades modernas,
pensando nesse poder como aquele que procura reger a multiplicidade dos
indivíduos na medida em que essa multiplicidade pode ser padronizada,
homogeneizada, ser reduzida a um padrão, a um modelo, aquele que procura a
sociedade, mas sem que isso implique em um esvaziamento daquilo que seria o
corpo individual.
Para Foucault a produção do indivíduo
pelo poder disciplinar é a produção de corpos individuais que devem ser vigiados,
treinados, utilizados, e só eventualmente punidos, como se sabe uma das teses
que Foucault mais critica é a ideia de que o poder é uma potência repressiva,
que representaria a potência do não, da negação. Ele chama isso de hipótese
repressiva e em oposição a ela é preciso pensar que o poder tem uma
positividade, que não deve ser confundido com o lado bom ou positivo do poder.
Oposta à ideia do poder enquanto repressão ele vai dizer que o poder tem uma
positividade que está no fato de que ele produz, ele cria, ele engendra, ele
fabrica.
Agimos agidos pelo poder
O poder não é o que impede, o
poder é o que impele. Impele o indivíduo a agir, impele o indivíduo a pensar.
Só que, impele o indivíduo a agir, mas agir na sujeição. Então, dessa maneira,
podemos dizer que o poder é capaz de fazer com que ajamos agidos. Agimos agidos
pelo poder, mas sem consciência disso, daí o fato de que agimos na ilusão de
que somos livres, pensando que temos nossas próprias ideias, nossas próprias
opiniões, quando de fato, agimos agidos porque somos fabricados, produzidos
pelo poder. Nós agimos em conformidade com aquilo que o poder produz em nós,
seja em nossos pensamentos, seja em nossos atos. Isso faz com que nessa
reflexão se torne possível dizer que o fato de agir agidos pelo poder, sem ter
consciência disso, faz com que enquanto indivíduos sociais, tornemo-nos
cúmplices.
Esse sempre foi o projeto
intelectual de Michel Foucault, em todo seu vasto programa de pesquisas, estava
sempre presente a ideia de denunciar o fato da dominação, que se esconde nas
múltiplas sujeições, nos múltiplos exercícios dissimulados da domesticação
social. Foucault fazia aparecer a ideia de que o fato bruto da dominação, que
se oculta justamente nesses vários espaços, vários saberes que circulam na
sociedade, não aparecem enquanto práticas de sujeição e dominação, mas que de
fato é o exercício que se dá, o exercício da sujeição dos indivíduos.
Foucault então na sua vasta obra
vai fazer aparecer diversos exemplos, o nascimento das diversas instituições de
saberes, no campo médico, no campo da educação, da política, da administração,
e todas essas experiências como traduzindo a invenção social, histórica, de
mecanismos de poder multiplicados, mas sem uma coordenação única, e sem uma
estratégia prévia.
Não se trata mais de pensar o
poder enquanto uma coisa que tem uma estratégia única ou pensada para a
dominação dos indivíduos. Essa é a ideia da maquinaria sem maquinista. Portanto
não há uma coordenação única e não há uma estratégia prévia. O poder nasce
justamente da invenção, do aparecimento, desses espaços, desses saberes, dessas
técnicas que vão, enquanto tais, se ocupando de produzir os indivíduos, de
produzir subjetivação na sujeição, isso é que é o poder. Portanto, em termos
foucaultianos, o melhor é evitar o singular e não falar mais de poder e sim de
poderes.
Oposição ao poder
Coerente com essas ideias
Foucault vai formular, no campo já de uma resposta política-epistemológica
dessa reflexão, a ideia de que se o poder tem essas características, aquilo que
pode se opor a ele deverá ter também características correspondentes. Isto é,
tratando-se de pensar lutas de emancipação, enfrentamentos do poder, a
perspectiva agora não é mais a perspectiva de uma luta única, de um
enfrentamento único, mas agora de um enfrentamento multiplicado, diversificado,
em conformidade com essa natureza do poder que é essa natureza diversificada,
ramificada, multiplicada, no corpo social inteiro.
Daí que ele vai pensar essas
formas multiplicadas de enfrentamento ao poder, ele vai chamar de lutas
pontuais, lutas específicas, que são lutas de crítica e resistência. No
pensamento de Foucault entra em colapso a ideia de revolução, como pensada pelo
pensamento marxista, como um enfrentamento único, como superação de um poder, para
o estabelecimento de uma nova realidade.
Não é possível pensar essa
revolução proletária onde se pensa a tomada do poder, primeiro porque não há
poder nenhum a tomar, porque o poder não tem sede única, sede fixa, não é um
objeto, não é uma coisa que se possa dizer não tenho o poder, então vou tomar o
poder, um individuo, uma classe ou um grupo.
Em segundo lugar, pensar os
indivíduos enquanto fabricados pelo poder, faz cair por terra também a ideia de
um proletariado ou uma classe, que seria potencialmente revolucionária. Temos
aí que os poderes produzindo os indivíduos na sujeição, na domesticação, serão indivíduos
fabricados na desmobilização para os enfrentamentos com o poder. O efeito mais
poderoso dessa maquinaria do poder na sociedade é que os indivíduos serão
socialmente úteis e politicamente dóceis, portanto aí ocorre a inexistência de
uma classe potencialmente revolucionária.
Foucault apresenta uma ideia
bastante consistente que é que aquela de que o que nós podemos fazer se
desejamos mudanças sociais o que nos resta é oferecer enquanto pontos de
resistência à dominação. Isso quer dizer primeiro uma mudança de si, e junto
disso o engajamento em lutas específicas, pontuais, que são as lutas que de
alguma forma Foucault passou a ser uns dos inspiradores, senão em alguns casos,
quase um guru: a luta das mulheres, a luta de minorias étnicas, a luta dos
homossexuais, dos estudantes, e mesmo de setores das classes trabalhadores. Mas
sempre com essa ideia de que esses são enfrentamentos parciais, são
enfrentamentos sem vitória.
Onde há poder há resistência
Uma ideia também muito forte que
esta nas reflexões de Foucault pelo poder é a de que onde há poder, há
resistências, mas a resistência sempre como aquilo que podemos oferecer
enquanto indivíduos produzidos pelo poder, numa perspectiva agonística,
enquanto arte da luta. Portanto os enfrentamentos do poder enquanto alguma
coisa que, sem vitória de nenhum lado, se produz como arte da luta. Não há
vitória, a possibilidade é de resistir, de oferecer resistências é de fazer a
crítica, é de multiplicar as formas de resistência e crítica a essa realidade
do poder que multiplica suas formas, que se renova em constância, em
permanência, que não se fixa em ponto algum, que não tem sede única, que não
tem um titular único.
Dessa maneira, se abre uma ideia
nova em certo sentido, e ela sim verdadeiramente revolucionária porque tem esse
potencial de criticidade, por nos chamar a atenção da importância de nos
oferecer enquanto pontos de resistência à dominação na vida cotidiana.
Importante chamar a atenção para a
lucidez e o alcance profundo que tem essa perspectiva de Foucault,
porque nos tira da ilusão moderna que o campo teórico-filosófico nos colocou,
seja na tradição liberal, seja na tradição marxista, que é pensar a relação com
o poder como alguma coisa exterior a nós próprios.
Enquanto tenho uma relação de
exterioridade, então posso falar do poder como alguma coisa que está longe de
mim, e dessa forma, também vivendo a ilusão de que o poder não me concerne. Ora,
a reflexão é lúcida por colocar os termos de uma outra maneira, ora o poder
concerne a cada um de nós, no sentido de que somos fabricados por ele. Agindo
agidos pelo poder, nossos atos, nossos pensamentos, são atos, são pensamentos
de poder; agindo sobre o outro, na relação com o outro, eu também exerço o
poder. Lucidez porque na própria formulação foucaultiana, ele diz que convém
pensar o poder não como uma coisa muito longe, aquela imagem, na teoria da
soberania como o poder que está na sede do palácio, o poder se confunde com o
governante, com o aparelho de repressão do Estado.
Ora olhando mais de perto, o
poder me atravessa, me concerne muito diretamente, como penso, como ajo, posso,
em geral é o caso; agir, pensar, exercer o poder, e é sempre esse o caso. E de
alcance profundo porque essa não me parece uma reflexão que se limite ao caso
das sociedades burguesas modernas, essa não é uma reflexão que se limitaria ao
caso das sociedades capitalistas, como alguns chegam a querer acreditar. Na
reflexão de Foucault se põe o entendimento do poder enquanto um fenômeno que
está presente onde exista vida social e coletiva.
Para finalizar, esse é um
pensamento que, não sem razão, foi tomado como uma inspiração forte para
diversos movimentos de emancipação nos diversos países, as lutas que ele já
chamava de lutas específicas, ou lutas pontuais. Trata-se de uma reflexão capaz
de orientar lutas, cujo objetivo não é uma vitória final sobre nada, mas desse
enfrentamento agonístico, onde o que se pode é oferecer resistência e crítica.
Daí sua atualidade, sua permanência entre nós como um pensamento de grande
importância nesse campo mesmo da formulação de ideias críticas de enfrentamento
à maquinaria do enfrentamento do poder que nos produz que nos fabrica.