domingo, 10 de abril de 2011

Corpo e alma em Sócrates

A morte como libertação do pensamento


- Deixa-o falar! – prosseguiu Sócrates. - A vós, entretanto, que sois meus juízes, devo agora prestarvos contas, expor as razões pelas quais considero que o homem que realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor de legítima convicção no momento da morte, possui esperança de ir encontrar para si, no além, excelentes bens quando estiver morto! Mas como pode ser assim? Isso será, Símias e Cebes, o que me esforçarei por vos explicar. Receio, porém, que, quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar- se para morrer e em estar morto!



Se isso é verdadeiro, bem estranho seria que, assim pensando, durante toda sua vida, que não tendo presente ao espírito senão aquela preocupação, quando a morte vem, venha a irritar-se com a presença daquilo que até então tivera presente no pensamento e de que fizera sua ocupação!



Nesta altura Símias se pôs a rir:



- Por Zeus, Sócrates, eu não tinha nenhuma vontade de rir, mas tu me fizeste rir! É que, penso, se o vulgo te ouvisse falar desse modo se convenceria de que há muito boas razões para atacar os que se ocupam de filosofia, e a ele fariam coro sem reserva os nossos amigos!": "na verdade", diria ele, "os que se dedicam à filosofia são homens que se estão preparando para morrer"; e, se há uma cousa que seguramente pensarão, é que é justamente esse o fim que eles merecem!



- E o vulgo teria razão, Símias, de dizer isso, embora, é claro, não soubesse que estava a dizer uma verdade. Pois os que ignoram ele e os que lhe fazem coro é de que modo se estão preparando para morrer aqueles que verdadeiramente são filósofos, de que modo eles merecem a morte, e que espécie de morte merecem. Entre nós, com efeito, ê que devemos tratar dessa questão, e, quanto ao vulgo e aos outros, não lhes demos atenção!



- Segundo nosso pensar, é a morte alguma cousa?



- Claro - replicou Símias.



- Nada mais do que a separação da alma e do corpo, não é? Estar morto consiste nisto: apartado da alma e separado dela, o corpo isolado em si mesmo; a alma, por sua vez, apartada do corpo e separada dele, isolada em si mesma. A morte é apenas isso?



- Sim, consiste justamente nisso.



- Examina agora, meu caro, se te é possível compartilhar deste modo de ver, pois nisso reside, com efeito, uma condição do progresso de nossos conhecimentos sobre o presente objeto de estudo. Crês que seja próprio de um filósofo dedicar-se avidamente aos pretensos prazeres tais como o de comer e de beber?



- Tão pouco quanto possível, Sócrates! - respondeu Símias.



- E aos prazeres do amor?



- Também não!



- E quanto aos demais cuidados do corpo, pensas que possam ter valor para tal homem? Julgas, por exemplo, que ele se interessará em possuir uma vestimenta ou uma sandália de boa qualidade, ou que não se importará e com essas coisas se a força maior duma necessidade não o obrigar a utilizá-las?

- Acho que não lhes dará importância, se verdadeiramente for filósofo.



- De forma que, na tua opinião prosseguiu Sócrates -, as preocupações de tal homem não se dirigem, de um modo geral, para o que diz respeito ao corpo, mas, ao contrário, na medida em que lhe é possível, elas se afastam do corpo, e é para a alma que estão voltadas?



- Sim, sem dúvida.



- É, pois, para começarmos a nossa conversa, em circunstâncias desta espécie, que se revela o filósofo, quando, ao contrário de todos os outros homens, afasta tanto quanto pode a alma do contato com o corpo?



- Evidentemente.



- Sem dúvida, a opinião do vulgo, Símias, é que um homem, para o qual não existe nada de agradável nessa espécie de coisas e que com elas não se preocupa, não merece viver, mas, pelo contrário, está muito próximo da morte quem assim não faz nenhum caso dos prazeres de que o corpo é instrumento?



- É a própria verdade o que acabas de dizer.



- E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não o corpo um entrave se na investigação lhe pedimos auxílio?



Quero dizer com isso, mais ou menos, o seguinte: acaso alguma verdade é transmitida aos homens por intermédio da vista ou do ouvido, ou quem sabe se, pelo menos em relação a estas coisas não se passem como os poetas não se cansam de no-lo repetir incessantemente, e que não vemos nem ouvimos com clareza? E se dentre as sensações corporais estas não possuem exatidão e são incertas, segue-se que não podemos esperar coisa melhor das outras que, segundo penso, são inferiores àquelas. Não é também este o teu modo de ver? '



- É exatamente esse.



- Quando é, pois, que a alma atinge a verdade? Temos dum lado que, quando ela deseja investigar com a ajuda do corpo qualquer questão que seja, o corpo, é claro, a engana radicalmente.



- Dizes uma verdade.



- Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser?



- Sim.



- E, sem dúvida alguma, ela raciocina melhor precisamente quando nenhum empeço lhe advém de nenhuma parte, nem do ouvido, nem da vista, nem dum sofrimento, nem sobretudo dum prazer - mas sim quando se isola o mais que pode em si mesma, abandonando o corpo à sua sorte, quando, rompendo tanto quanto lhe é possível qualquer união, qualquer contato com ele, anseia pelo real?



- É bem isso!



- E não é, ademais, nessa ocasião que a alma do filósofo, alçando-se ao mais alto ponto, desdenha o corpo e dele foge, enquanto por outro lado procura isolar-se em si mesma?



- Evidentemente!



- Mas que poderemos dizer, Símias, do seguinte: afirmaremos a existência do "justo em si mesmo", ou a negaremos?

- Certamente que a afirmaremos, por Zeus!



- E também a do "belo em si" e a do "bom em si", não é verdade?



- Como não?



- Ora, é certo que jamais viste qualquer ser desse gênero com teus olhos?



- Jamais.



- Mas então é porque os apreendeste por qualquer outro sentimento que não por aqueles de que o corpo é instrumento? Ora, o que eu disse há pouco é para todos os seres, tanto para a "grandeza", a "saúde", a "força", como para os demais - é, numa só palavra e sem exceção -, a sua realidade: aquilo, precisamente, que cada uma dessas coisas é. E será, então, por intermédio do corpo que o que nelas há de mais verdadeiro poderá ser observado? Ou quem sabe se, pelo contrário, aquele dentre nós que se tiver o mais cuidadosamente e no mais alto ponto preparado para pensar em si mesma cada uma dessas entidades, que considera e toma por objeto - quem sabe se não é esse quem mais deve aproximar- se do conhecimento de cada uma delas?



- Isso é absolutamente certo.



- E quem haveria de obter em sua maior pureza esse resultado, senão aquele que usasse no mais alto- grau, para aproximar-se de cada um desses seres unicamente o seu pensamento, sem recorrer no ato de pensar nem à vista, nem a um outro sentido, sem levar nenhum deles em companhia do raciocínio; quem, senão aquele que, utilizando-se do pensamento em si mesmo, por si mesmo e sem mistura, se lançasse à caça das realidades verdadeiras, também em si mesmas, por si mesmas e sem mistura? E isto só depois de se ter desembaraçado o mais possível de sua vista, de seu ouvido, e, numa palavra, de todo o seu corpo, já que é este quem agita a alma e a impede de adquirir a verdade e exercer o pensamento, todas as vezes que está em contato com ela? Não será este o homem, Símias, se a alguém é dado fazê-lo neste mundo, que atingirá o real verdadeiro?



- Impossível, Sócrates, falar com mais verdade!



- Assim, pois - prosseguiu Sócrates-, todas essas considerações fazem necessariamente nascer no espírito do autêntico filósofo uma crença capaz de inspirar-lhe em suas palestras uma linguagem semelhante a esta: "Sim, é possível que exista mesmo uma espécie de trilha que nos conduz de modo reto, quando o raciocínio nos acompanha na busca. E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, este objeto é, como dizíamos, a verdade. Não somente mil e uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças e eis-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! Vede, pelo contrário, o que ele nos dá: nada como o corpo e suas concupiscências para provocar o aparecimento de guerras, dissenções, batalhas; com efeito, na posse de bens é que reside a origem de todas as guerras, e, se somos irresistivelmente impelidos a amontoar bens, fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros escravos! Por culpa sua ainda, e por causa de tudo isso, temos preguiça de filosofar. Mas o cúmulo dos cúmulos está em que, quando conseguimos de seu lado obter alguma tranquilidade, para voltar-nos então ao estudo de um objeto qualquer de reflexão, súbito nossos pensamentos são de novo agitados em todos os sentidos por esse intrujão que nos ensurdece, tonteia e desorganiza, ao ponto de tornar-nos incapazes de conhecer a verdade. Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nos há de pertencer aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando estivermos mortos, tal como o indica o argumento, e não durante nossa vida! Se, com efeito, é impossível, enquanto perdura a união com o corpo, obter qualquer conhecimento puro, então de duas uma: ou jamais nos será possível conseguir de nenhum modo a sabedoria, ou a conseguiremos apenas quando estivermos mortos, porque nesse momento a alma, separada do corpo, existirá em si mesma e

por si mesma - mas nunca antes. Além disso, por todo o tempo que durar nossa vida, estaremos mais próximos do saber, parece-me, quando nos afastarmos o mais possível da sociedade e união com o corpo, salvo em situações de necessidade premente, quando, sobretudo, não estivermos mais contaminados por sua natureza, mas, pelo contrário, nos acharmos puros de seu contato, e assim até o dia em que o próprio Deus houver desfeito esses laços. E quando dessa maneira atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. E nisso, provavelmente, é que há de consistir a verdade. Com efeito, é lícito admitir que não seja permitido apossar- se do que é puro, quando não se é puro !" Tais devem ser necessariamente, segundo creio, meu caro Símias, as palavras e os juízos que proferirá todo aquele que, no correto sentido da palavra, for um amigo do saber. Não te parece a mesma cousa?



- Sim, Sócrates, nada mais provável.



PLATÃO. Diálogos, Fédon. São Paulo: Abril, 1972, p. 71-74.




3 comentários:

Bianca Queiroz disse...

Bom o texto “Corpo e alma em Sócrates” esta se referindo as utilidades e prazeres que o corpo tem em geral. Achei muito interessante a forma como foi criado esse texto porque ali com os grandes filósofos falando podemos aprender mais assim também podemos saber mais fácil q o corpo é para sentir, pensar, agir e etc. E também fala que o “corpo e a alma” eles referem-se na questão em que a alma precisa do corpo ele radicalmente a engana para q ela possa pensar que estar no comando. Muito interessante a forma de pensar dos filósofos.

Bianca Queiroz dos Santos
3M2
Matutino

nathalia venâncio disse...

Achei muito interessante o texto ,pois esta se referindo as questões do corpo em geral, que o corpo tem como utilidades de sentir ,pensar ,corresponder ,e que a alma necessita do corpo. Essa foi uma das formas dos filósofos pensarem em relação ao "corpo e alma".Para os filósofos o corpo é claro e engana radicalmente ,e para todos os seres ,tanto para a grandeza e a força o corpo nos tranmiti essa serie de fatores por intermedio da alma. São por esse modo de penssa que os filósofos chegaram a essa conclusão interessante.

Nathália Venâncio
3M3
Matutino

amanda disse...

“Corpo e alma em Sócrates” esta se referindo as utilidades e prazeres que o corpo tem em geral. E muito interessante a forma como foi criado esse texto porque ali com os grandes filósofos falando podemos aprender mais assim também podemos saber mais fácil q o corpo é para sentir, pensar, agir e etc. E também fala que o “corpo e a alma” eles referem-se na questão em que a alma precisa do corpo ele radicalmente a engana para q ela possa pensar que estar no comando. Muito interessante a forma de pensar dos filósofos.

Amanda Gonçalves da Silva
3v1