Adaptação do texto de Max Shulman para dramatização.
Narrador: Eu era frio e lógico. Sutil,
calculista, perspicaz, arguto e astuto – era tudo isso – e acreditem - modesto.
Tinha o cérebro poderoso como um motor de Fórmula 1, preciso como uma balança
de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha - imaginem só - apenas 17
anos. Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem,
por exemplo, o caso do meu colega de sala, Pedro.
Mesma idade,
mesma formação, mas burro como uma vaca. Um bom sujeito, compreendam, mas sem
nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior que tudo,
dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se
levar por qualquer nova moda que apareça, entregar-se a alguma idiotice só
porque os outros a seguem, isto, para mim, é o cúmulo da loucura. Pedro, no
entanto, não pensava assim.
Certa tarde
encontrei-o deitado com tal expressão de sofrimento no rosto, se contorcendo,
que o meu diagnóstico foi imediato: apendicite!
Mateus: Não se mexa. Vou chamar o
médico.
Pedro: (balbuciou):
Aiiii... Aiiiii... iPhone!
Narrador: Interrompi minha corrida.
Mateus: iPhone?
Pedro: (gemendo): Quero um celular da Apple.
Narrador: Percebi que o seu problema não
era físico, mas mental.
Mateus: Por que você quer um iPhone?
Pedro: (gritando e dando tapas na própria cabeça): Eu devia ter adivinhado
que ia precisar de um! Como um idiota, gastei todo o meu dinheiro e agora estou
liso!
Mateus (incrédulo): Quer dizer que você está sofrendo por isto?
Pedro: Todos os alunos antenados da
escola têm! Onde você tem andado?
Mateus: Na biblioteca, um lugar não
muito frequentado pelos alunos antenados da escola.
Narrador: Ele levantou e pôs-se a andar de
um lado para o outro.
Pedro: O som é perfeito, a cam é
perfeita, preciso conseguir um iPhone. Preciso!
Mateus: Por que, Pedro? Veja a coisa de
maneira racional. Pense! Enfiar um fone dentro do ouvido, para ouvir música
muito alta o dia inteiro, prejudica a audição. Pode até te deixar surdo! Além
disso, esses alunos antenados vivem tentando enviar e receber mensagens durante
a aula, o que só prejudica a atenção deles.
Pedro: (com impaciência): Você não compreende. É o que todo mundo quer.
Você não gosta de tecnologia?
Mateus (sinceramente): Não.
Pedro: Pois eu, sim! Faria tudo para ter
um iPhone. Tudo!
Narrador: Aquele instrumento de precisão, meu poderoso
cérebro, começou a funcionar a todo vapor.
Mateus: (examinando o rosto dele com os olhos semicerrados): Tudo?
Pedro: (em um tom dramático): Tudo!
Narrador: Alisei o meu queixo e comecei a
pensar. Eu, por acaso, sei onde conseguir um iPhone. Meu irmão já quis me dar
um, mas eu realmente não me interesso por essas parafernálias tecnológicas.
Acho que se eu pedisse ele não iria me negar.
E, também por
acaso, Pedro tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos
ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à Jéssica. Eu há muito desejava
Jéssica. Apresso-me a esclarecer que meu desejo não era de natureza emotiva. A
moça, não há dúvidas, despertava paixões. Era daquelas que decretavam feriado
nacional por onde quer que passasse. Todos paravam para vê-la passar. Até mesmo
- ou principalmente - as mulheres, se corroendo de inveja... Mas eu não era
daqueles que se deixam dominar pelo coração. Desejava Jéssica para fins
engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Meu sonho era
cursar Direito. Dali a alguns anos estaria me iniciando na profissão. Eu sabia
muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um
advogado. Os advogados de sucesso, segundo minhas observações, eram quase
sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única
exceção, Jéssica preenchia perfeitamente esses requisitos.
Ela era linda.
Graciosa também era. Por graciosa, quero dizer, cheia de graças sociais.
Finíssima! Tinha o porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que
deixavam transparecer a melhor das linhagens. À mesa, suas maneiras eram
finíssimas. Eu já vira Jéssica na cantina da escola comendo a especialidade da
casa - um sanduíche natural de frango, com alface e molho - sem nem sequer
umedecer os dedos.
Inteligente ela
não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava que, sob minha
tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos, valia a pena tentar. Afinal
de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que
uma moça feia e inteligente ficar bonita.
Mateus: Pedro! Você ama Jéssica?
Pedro: Acho-a uma boa garota, mas não
sei se chamaria isso de amor. Por quê?
Mateus: Você tem alguma espécie de
arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?
Pedro: Não. Às vezes ficamos juntos, mas
saímos os dois com outros amigos também. Por quê?
Mateus: Existe algum outro homem de quem
ela goste de maneira especial?
Pedro: Que eu saiba, não. Por quê?
Mateus (fazendo que sim, com a cabeça, satisfeito): Em outras palavras, a
não ser por você, o campo está livre, é isto?
Pedro: Acho que sim... Que papo estranho
é esse?
Mateus: (fingindo inocência): Nada, nada.
Pedro: Onde é que você vai?
Mateus: Vou para casa.
Pedro: (apegando-se ao braço de Mateus):
Escute, em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me
emprestar para eu comprar o iPhone?
Mateus: (piscando o olho misteriosamente): Posso até fazer mais do que isso.
Até segunda.
Narrador: Peguei minha bolsa e saí. O
final de semana demorou a passar. Eu estava ansioso para encontrar Pedro na
segunda e quando cheguei na escola fui logo falar com ele. Abri a bolsa e tirei
o iPhone que ganhei do meu irmão.
Mateus: Olhe.
Pedro: Caraca!
Narrador: Pedro exclamou, com reverência.
Enquanto colocava o fone de ouvido e explora os recursos do aparelho.
Pedro: (repetindo umas quinze ou vinte vezes): Caraca! Caraca! Caraca!...
Mateus: Você gostaria de ficar com ele?
Pedro: (gritando e apertando a engenhoca contra o peito): Claro, claro!...
Narrador: Em seguida, seus olhos tomaram
um ar precavido.
Pedro: O que você quer em troca?
Mateus: A sua ficante.
Pedro: (sussurrando, horrorizado): Jéssica? Você quer a Jéssica?
Mateus: Isto mesmo...
Narrador: Ele tirou o fone do ouvido,
enrolou no iPhone e me devolveu bruscamente.
Pedro: (resoluto): Nunca.
Narrador: Nessa hora eu dei de ombros...
Mateus: OK. Se você não quer ser antenado,
o problema é seu...
Narrador: Sentei numa cadeira, coloquei o iPhone
na mesa e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Pedro, com o rabo dos
olhos. Aquele era um homem partido em dois. Primeiro olhava o iPhone, com a
expressão de uma criança de rua à porta de um restaurante. Depois dava-lhe as
costas e cerrava os dentes, altivo. Depois, voltava a olhar para o aparelho,
com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois, virava-se outra vez,
mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo aumentando, a
resolução “despencando”. Finalmente não se virou mais; ficou olhando para o iPhone
com pura lascívia. O desejo falou mais alto.
Pedro: (balbuciando): Não é como se eu estivesse apaixonado por Jéssica ou
mesmo fosse namorado dela, ou coisa parecida.
Mateus: (murmurando): Isso mesmo...
Pedro: Afinal, Jéssica significa o que
para mim, ou eu para ela?
Mateus: Nada.
Pedro: Foi uma coisa banal. Nos
divertimos um pouco, só isso... ficamos, às vezes.
Mateus: Ligue o iPhone.
Narrador: Entreguei o aparelho e ele
obedeceu.
Pedro: (contente): O touch screen é incrível!
Narrador: Levantei da cadeira e perguntei,
estendendo a mão:
Mateus: Negócio feito?
Pedro: (engolindo em seco e apertando a minha mão): Feito.
Narrador: Saí com Jéssica pela primeira
vez na tarde seguinte. O primeiro programa teria o caráter de uma pesquisa
preparatória. Eu desejava avaliar o trabalho que me esperava para elevar a sua
mente ao nível desejado. Levei-a para comer pizza e ao cinema.
Jéssica: Puxa, que pizza massa!
Jéssica: Nossa, que filme massa!
Narrador: Levei-a para casa.
Jéssica: Puxa, foi um programa massa! Boa
noite.
Narrador: Voltei para casa com o coração
pesado. Eu subestimei gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância
daquela moça parecia aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era
preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento a que eu me propus
era simplesmente gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Pedro.
Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos, no olhar de inveja
que ela despertava nos homens e mulheres quando “desfilava” pelos corredores da
escola, na maneira como entrava numa sala ou segurava uma faca e um garfo, e
aí, decidi tentar novamente.
Procedi, como
sempre, sistematicamente. Decidi dar-lhe um curso de Lógica. Acontece, que no
ano anterior eu já havia tido aulas de Filosofia e de Lógica formal, e,
portanto, tinha tudo na ponta da língua quando a fui buscar para o segundo
encontro:
Mateus: Jéssica, esta tarde iremos até o
parque conversar.
Jéssica: Que massa!
Narrador: Uma coisa deve ser dita em favor
da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo. Fomos até o
parque, nos sentamos debaixo de uma grande árvore, e ela me olhou cheia de
expectativa.
Jéssica: Sobre o que vamos conversar?
Mateus: Sobre Lógica.
Narrador: Ela pensou durante alguns
segundos e depois sentenciou:
Jéssica: Massa! Massa!
Mateus: (comecei, limpando a garganta). A Lógica é o estudo do raciocínio.
Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias
ou sofismas, os erros mais comuns do nosso pensamento. É o que vamos abordar
hoje.
Jéssica: (exclamou, sacudindo as mãos de alegria): Massa!
Narrador: Ela tinha a mesma expressão de
perspicácia que se esperaria de uma foca diante da possibilidade de ganhar um
peixe. Fiz uma careta de desânimo, mas segui em frente, com coragem.
Mateus: Vamos primeiro examinar uma
falácia chamada generalização não qualificada.
Jéssica (piscando os olhos com animação): Vamos.
Mateus: Generalização não qualificada
quer dizer um argumento baseado numa generalização. Por exemplo: o exercício físico
é bom, portanto todos devem se exercitar.
Jéssica: (fervorosamente): Eu estou de acordo. Quer dizer, o exercício é
maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
Mateus (com ternura): Jéssica, esse argumento é uma falácia. Dizer que o
exercício é bom é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem
sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordens de seus médicos
para não se exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o
exercício é geralmente bom, ou é bom pra maioria das pessoas. Senão, está se
cometendo uma generalização não qualificada. Compreendeu?
Jéssica (puxando a manga da camisa de Pedro): Não. Mas isto é massa. Quero
mais. Quero mais! Fala! Fala!
Mateus: Será melhor se você parar de
puxar a manga da minha camisa! Em seguida, abordaremos uma falácia muito comum
chamada generalização apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar
francês, eu não sei falar francês, Pedro não sabe falar francês. Devo, portanto
concluir que ninguém na escola sabe falar francês.
Jéssica: (espantada): É mesmo? Ninguém? Nem uma pessoa?
Narrador: Reprimi a minha impaciência...
Mateus: É uma falácia, Jéssica. Essa
generalização foi feita de maneira apressada. Não há exemplos suficientes para
justificar essa conclusão.
Narrador: Ela sorriu encantadora, mas eu
pensei: mas que cara de retardada!
Jéssica: (animada): Você conhece outras falácias? Isto é melhor do que
dançar!
Narrador: Esforcei-me por conter uma onda
de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela
moça. Absolutamente nada! Mas não sou outra coisa senão persistente. Quase
teimoso. Continuei:
Mateus: A seguir, vem a ignorância de
causa. Ouça: não vamos chamar o Flávio para ir à praia. Toda vez que ele
vai junto, começa a chover.
Jéssica: Eu conheço uma pessoa exatamente
assim! Uma moça da minha rua, Rafaela. Nunca falha. Toda a vez que ela vai
junto à praia...
Mateus: (interrompendo com energia): Jéssica! Isso é uma falácia. Não é a
Rafaela que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará
incorrendo em ignorância de causa se puser a culpa na Rafaela.
Jéssica: (contrita): Nunca mais farei isso. Você está bravo comigo?
Mateus (suspirei): Não, Jéssica. Não estou bravo.
Narrador: Talvez fosse mais fácil ensinar
Lógica a um chimpanzé.
Jéssica: Então conte outra falácia.
Mateus: Muito bem. Vamos experimentar as
premissas contraditórias. Se Deus pode fazer qualquer coisa, então pode
criar uma pedra tão pesada que Ele mesmo não conseguirá levantar!
Jéssica (imediatamente): É claro...
Mateus: (exclamando): Mas, se Ele pode fazer tudo, então Ele também pode
levantar a pedra!
Jéssica: (pensativa): É mesmo! Bem, então, acho que Ele não pode fazer a tal
pedra.
Mateus: Mas Ele pode fazer tudo.
Narrador: Ela coçou sua cabeça linda e
vazia. Aquele cérebro poderia ser vendido como “zero quilômetros”. Jamais fora
usado!
Jéssica: Estou confusa.
Mateus: É claro que está. Quando as
premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe
uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
Jéssica: (entusiasmada): Não, mas conte outra destas histórias massas. Estou
adorando!
Narrador: Consultei o relógio.
Mateus: Acho melhor pararmos por aqui.
Levarei você para casa, e lá você pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra
sessão amanhã à tarde.
Narrador: Deixei-a em casa, onde ela me
assegurou que a tarde fora realmente massa, e voltei completamente desanimado
para o meu quarto. Por alguns segundos, brinquei com a ideia de procurar Pedro
e dizer que podia ter sua ficante de volta.
Era evidente que
meu projeto estava condenado ao fracasso. Aquela moça tinha, simplesmente, uma
cabeça totalmente à prova de lógica.
Mas logo
reconsiderei. Perdi uma tarde, por que não perder outra? Quem sabe se em alguma
parte daquela cratera de vulcão adormecido, que era a mente de Jéssica, algumas
“brasas” de inteligência ainda estivessem vivas? Talvez, de alguma maneira, eu
ainda conseguisse abaná-las até que flamejassem... As perspectivas não eram das
mais animadoras, mas acabei decidindo e tentei outra vez.
Sentado sob a mesma
árvore, na tarde seguinte, disse:
Mateus: Nossa primeira falácia desta
tarde se chama por misericórdia.
Narrador: Ela estremeceu de emoção.
Mateus: Ouça com atenção. Um homem vai
pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais são as suas qualificações, o
homem responde que tem uma mulher e seis filhos em casa, que a mulher é
aleijada, as crianças não têm o que comer, não têm o que vestir, nem o que calçar,
e vive em um barraco que pode desabar durante as chuvas.
Narrador: Uma lágrima desceu por cada uma
das faces de Jéssica.
Jéssica: (soluçando e quase chorando): Isso é horrível, horrível!
Mateus: É horrível, mas não é argumento.
O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre suas qualificações. Em vez
disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia por misericórdia.
Compreendeu?
Jéssica: (entre soluços): Você tem um lenço?
Narrador: Dei-lhe o lenço e fiz o possível
para não gritar de desespero, enquanto ela enxugava os olhos.
Mateus (controlando o tom da voz): A seguir discutiremos a falsa analogia.
Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante as
provas. Afinal, os cirurgiões levam radiografias para se guiarem durante uma
operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os
construtores têm plantas e projetos que os orientam na construção de uma casa.
Por que, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
Jéssica (entusiasmada): Pois olhe esta é a ideia mais massa que eu já ouvi
na minha vida! Você é um gênio!
Mateus (com impaciência): Jéssica esse argumento é falacioso. Os
cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo testes para provar
o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente
diferentes e não se pode fazer analogia entre elas. Não tem jeito de comparar
uma situação com a outra, entendeu?
Jéssica: Continuo achando a ideia massa.
Mateus: (murmurando e fazendo cara feia): Droga! A seguir, tentaremos a
falácia hipótese contrária ao fato.
Jéssica: Ah! Essa parece ser boa!
Mateus: Ouça: se não fosse pela princesa
Isabel, a escravidão jamais seria abolida no Brasil.
Jéssica (concordando e sacudindo vigorosamente a cabeça): É mesmo, é mesmo!
Brilhante! Você viu a novela? Eu fiquei revoltada como os negros eram tratados.
Aquele ator, o Caio Castro é tudo de bom! Ele me fez suspirar!
Mateus: (friamente): Se você conseguir esquecer o Caio Castro por alguns
minutos, gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. A escravidão
poderia ter acabado de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa como o Dom Pedro II fizesse isto. Muita coisa poderia
acontecer. Não se pode partir de uma hipótese baseada no acaso e tirar dela
qualquer conclusão lógica.
Jéssica: Eles deveriam botar o Caio
Castro em mais novelas. Ele é lindo!
Narrador: A impaciência voltou a me
torturar. Pensei: como um ser humano pode ser tão ignorante? Decidi: mais uma
tentativa! Mas só mais uma. A última! Há um limite ao que um homem pode
suportar.
Mateus: A próxima falácia se chama envenenar
o poço.
Jéssica: Credo!
Mateus: Dois homens vão começar um
debate. O primeiro se levanta e diz: "Meu oponente é um mentiroso conhecido.
Não é possível acreditar numa só palavra do que ele disser". Agora,
Jéssica, pense bem. O que está errado?
Narrador: Vi-a enrugar a sua linda testa,
concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência - o primeiro que eu vira
- surgiu em seus olhos.
Jéssica: (com indignação): Não é justo! Isso não é nada justo. Uma ex-amiga
já tentou isso comigo! Que chance tem o segundo homem se o primeiro diz que é
um mentiroso, antes mesmo dele começar a falar?
Mateus: (gritei exultante): Exato! Cem por cento exato! Não é justo. O
primeiro homem envenenou o poço antes que os outros pudessem beber dele. Atou
as mãos do adversário antes da luta começar... Jéssica: estou orgulhoso de
você!
Jéssica: (murmurando, envergonhada): Ora....
Mateus: Agora vejamos a petição de princípio.
Por exemplo: o cigarro prejudica a saúde porque faz mal ao organismo.
Jéssica (confiante): Isto não explica nada, é como se alguém dissesse:
prejudica porque prejudica.
Mateus: (sorrindo): Exatamente! Este sofisma toma como verdade justamente o
que está em discussão. Como vê minha querida, não é tão difícil. Só requer
concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo que
aprendemos até agora.
Jéssica: (abanando as mãos): Vamos lá!
Narrador: Animado pela descoberta de que
Jéssica não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo
que dissera até ali. Sem parar, citei exemplos, apontei falhas, martelei
“lógica” sem dar tréguas. Era como cavar um túnel. A princípio, apenas
trabalho, suor e escuridão. Não tinha ideia de quando veria a luz, ou mesmo se
a veria. Mas insisti. Dei duro, cavouquei até com as unhas, e finalmente fui
recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que,
finalmente, o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo. Jéssica
finalmente parecia ter sido apresentada ao “conhecimento”. Levei cinco tardes
de trabalho forçado, mas valeu a pena. Eu transformei Jéssica em uma lógica, e
a ensinei a pensar. Minha tarefa chegou a bom termo. Fiz dela uma mulher digna
de mim. Somente agora ela estava apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita
para as minhas muitas mansões, uma mãe adequada para meus filhos privilegiados.
Não se deve
deduzir que eu não sentisse amor pela moça. Muito pelo contrário. Na mitologia
grega, Pigmaleão amava a mulher perfeita que moldou para si; eu também amava a
minha doce Jéssica, que moldei com o suor do meu conhecimento. Decidi
comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegou a hora de
mudar nossas relações, de acadêmicas para românticas.
Mateus: Jéssica: hoje não falaremos de
falácias.
Jéssica: (desapontada): Puxa!
Mateus: Minha querida (favorecendo-a com um sorriso) hoje é a
quinta tarde em que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há
dúvidas de que formamos um bom par.
Jéssica(exclamou alegremente): Isso é uma
generalização apressada!
Mateus: Como?
Jéssica: Generalização apressada. Como é
que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Narrador: Dei uma risada, divertido. Aquela
criança adorável aprendeu bem suas lições.
Mateus: (dando um tapinha tolerante na mão de Jéssica) Minha querida, cinco
encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para
saber se ele é bom ou não.
Jéssica: Falsa analogia. Eu não
sou um bolo, sou uma pessoa. Não se pode comparar duas situações completamente
diferentes e chegar à uma conclusão análoga!
Narrador: Dei outra risada, mas agora já
não tão divertida. Essa criança adorável talvez tivesse aprendido sua lição bem
até demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração
de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto meu cérebro
privilegiado selecionava as palavras adequadas. Depois comecei:
Mateus: Jéssica, eu a amo. Você é tudo
no mundo para mim... é a lua e as estrelas... as constelações no firmamento.
Por favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão minha vida não
terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei a comida, vagarei pelo mundo aos
tropeções, me tornarei um fantasma de olhos vazios...
Narrador: Pronto! Eu pensei: está
liquidado o assunto. Agora ela cai em meus braços!
Jéssica: Por misericórdia!
Narrador: Cerrei os dentes. Eu não era
mais o Pigmaleão da mitologia; era o Dr. Frankenstein, e o monstro que eu havia
criado me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que
ameaçava me invadir. Era preciso manter a calma a qualquer preço.
Mateus: (forçando um sorriso): Bem, Jéssica não há dúvidas que você aprendeu
bem as falácias.
Jéssica: Aprendi mesmo!
Mateus: E quem foi que as ensinou a
você, Jéssica?
Jéssica: Foi você.
Mateus: Isso mesmo. E, portanto você me
deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida? Se não fosse por mim, você nunca
saberia o que é uma falácia...
Jéssica: Hipótese contrária ao fato.
Eu poderia descobrir através de outra pessoa, ou até mesmo sozinha, algum dia.
Não se pode tirar conclusões definitivas baseadas em acasos.
Narrador: Enxuguei o suor do rosto, já
lívido – o desespero afigurava-se nítido em meus olhos.
Mateus: (com voz rouca): Jéssica você não deve levar tudo ao pé da letra.
Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos
na escola nada tem a ver com a vida.
Jéssica (brincando e sacudindo o dedo na minha direção): Generalização
não qualificada. Quer que eu diga o porquê?
Narrador: Foi o bastante! Levantei-me num
salto, berrando como um touro indomável:
Mateus (trovejei): Você vai ou não vai me namorar?
Jéssica: Não, eu não vou.
Mateus: Por que não?
Jéssica: Porque hoje à tarde prometi ao Pedro
que seria a namorada dele.
Narrador: Quase caí para trás, fulminado
por tamanha infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de
apertar a minha mão!
Mateus: (gritando e chutando a grama): Aquele safado! Você não pode sair com
ele, Jéssica. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
Jéssica: Envenenar o poço! Que
feio! E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Narrador: Com uma admirável demonstração
de força de vontade, modulei minha voz.
Mateus: Muito bem. Você é uma lógica.
Vamos olhar as coisas de maneira lógica então. Como pode preferir o Pedro? Olhe
para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com o futuro
assegurado. E veja Pedro um maluco, um boa-vida, um sujeito que nunca saberá se
vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para
namorar Pedro?
Jéssica: Posso, sim: ele tem um iPhone!
A-do-ro!
Narrador: Ela saiu correndo para os braços
do Pedro que se aproximava com o iPhone, colocou um dos fones no próprio
ouvido, enquanto eu me culpava pela minha presunção.
Mateus: Amar é um grande erro, porque o
amor é uma falácia.
Jéssica: (gritando de longe): E isso é uma Petição de princípio!
Fim
Exercícios: