terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O corpo

Foco de uma preocupação constante na nossa época, as abordagens atuais do senso comum sobre o corpo carregam muitas concepções arcaicas desenvolvidas no Ocidente pela Filosofia ou pela Religião.  Tais abordagens ultrapassadas trabalham com a cisão entre o corpo material ou físico e uma existência não material, entendida como alma, sujeito, consciência ou mente.

É fácil perceber que temos um corpo e que a consciência desse corpo parece ser algo distinto.

Assim eu posso distinguir a mão, que eu vejo, e a ideia que tenho dela em minha mente. Agora mesmo o leitor deve ter diante de si um computador que é um objeto e tem consciência de que ele existe, porque pode percebê-lo pelos seus sentidos corporais. Ou seja, a consciência só existe por causa do corpo e as sensações que ele proporciona. 

Outro erro corriqueiro é crer que o corpo representa algo inferior, imperfeito, impuro ou mau e deveria ser controlado a qualquer preço.  A prática do autoflagelo, e que existe até hoje em muitas religiões é um exemplo disso.

Essa depreciação do corpo em relação a alma, encobria muitas injustiças, como no período colonial brasileiro, em que os padres se preocupavam apenas em converter os escravos ao catolicismo para salvar suas almas. Os padecimentos corporais que eles suportavam eram considerados naturais, ou sem importância, perto da imortalidade de uma alma salva.

Algo parecido acontece atualmente, quando muitas pessoas se conformam com o sofrimento, fome, falta de moradia, de tratamento médico, de educação, acreditando que serão recompensadas em outra vida. Trata-se de um pensamento com raízes antigas, ancoradas no cristianismo e na Filosofia.

Na Filosofia de Sócrates, por exemplo, o corpo não era objeto principal de preocupação, mas sim a alma, entendida como aquela que se serve do corpo.  Escolas filosóficas posteriores, como os epicuristas e estóicos, reavaliaram o tema, o que tornou o corpo um motivo de cuidado integrado à alma.

Na Filosofia cristã da época medieval o corpo é objeto de constante preocupação. Santo Agostinho enfatizou a necessidade de conhecer as debilidades corporais. A “carne” era o corpo de desejo, portanto prestes a pecar. A sexualidade passa a ser estendida do corpo aos pensamentos, sobre os quais era preciso estar sempre atento.

* * *
Conta uma parábola que dois monges cristãos, que haviam feito voto de castidade, foram atravessar um riacho. Chovia muito e a correnteza estava muito forte. Encontraram no rio uma bela jovem que hesitava em atravessar. Ela se dirigiu a um deles e disse,


- Vocês poderiam me ajudar a chegar ao outro lado?

Ao que um dos monges respondeu, enquanto já seguia água adentro:

- Volte para onde veio e aguarde a correnteza diminuir, nós não podemos trair nossos votos.

O outro monge, que vinha logo atrás, pegou a jovem no colo e levou-a em segurança até o outro lado.

Eles continuaram seu caminho e numa certa altura do caminho o primeiro deles não agüentou e disparou:

- Como pode você quebrar os seus votos de jamais tocar em uma mulher e continuar caminhando assim ao meu lado, como se nada tivesse acontecido?

E ele respondeu:

Eu a deixei lá atrás, mas você ainda a leva no seu pensamento. Quem fez o mal? Quem fez o bem? Mais grave do que trair os votos é trair a si mesmo.

*  * *


A modernidade mudou alguns termos, mas a divisão permaneceu. Para Descartes, não temos como ter certeza se temos realmente um corpo, mas temos certeza de nossas dúvidas, e como a dúvida é um pensamento, só por meio dele sabemos que existimos: “penso, logo existo”.  Na filosofia cartesiana o corpo era uma extensão da alma, como uma máquina:

[...] o corpo de um homem vivo difere de um morto como um relógio, ou outro autômato (ou seja, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi construído, com tudo o que se exige para a sua ação, distingue-se do mesmo relógio ou da outra máquina quando está quebrada e o princípio de seu movimento para de atuar (DESCARTES, 1979, p. 102)

Merleau-Ponty contrapôs ao corpo-máquina de Descartes, a noção de corpo-organismo, entendida como uma fusão entre a alma e corpo em um organismo vivo. Mesmo assim o sujeito pensante permaneceu como preocupação essencial.

Analisando a história, o filósofo francês Michel Foucault demonstrou que houve uma mudança de abordagem do corpo.  Até o século XVIII o poder soberano era exercido sobre o corpo através de suplícios e penas. Podemos citar como o exemplo mais marcante disso no Brasil, o esquartejamento de Tiradentes.

Entretanto, esse sistema de castigos era tremendamente dispendioso e, com o tempo, o poder soberano deu lugar ao poder disciplinar. Assim, se criou uma tecnologia do corpo humano, cujo principal objetivo era tornar o corpo obediente, útil e produtivo para a sociedade, por meio do trabalho. Nessa época nasceram as quatro organizações disciplinadoras modernas, a prisão, a fábrica, a escola e o hospital, todas empenhadas na sujeição do corpo.

As pesquisas modernas tendem a reduzir o comportamento, os sentimentos e até os pensamentos humanos a reações químicas processadas no corpo. Se por um lado isso acaba de vez com a dicotomia corpo/sujeito, por outro lado afirma um determinismo sem precedentes para o homem, colocando em risco sua possibilidade de liberdade.

O fato é que o corpo, em sua complexidade material como sentimento e consciência, permanece como mistério, devido a dificuldade de controlar pesquisas que investiguem a interferência da vontade sobre os processos químicos e biológicos.

Como conhecer algo que quando lembramos já mudou? O si mesmo que é o corpo só pode ser pensado inédito, sendo, vivendo e nunca dito.

Aprisionado por verdades produzidas na ciência, na educação, na política e na mídia, torna-se urgente uma filosofia do corpo que se traduza em trabalhos de liberdade que retomem o protagonismo do corpo sobre ele mesmo.  A resistência do corpo se faz na invenção de modos de vida originais e não massificados, cada vez mais diferenciados, na construção de novos valores  e numa certa retomada pelo encantamento potencializador do mundo, esquecidos pela ciência e pela  filosofia moderna.

REFERÊNCIAS:

DESCARTES, R. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1979.