sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Filosofia com alegria

Nosso idioma, o português, é considerado uma língua latina por ser derivado do latim, antiga língua do Império Romano. Também por isso chamamos de América Latina, a parte do continente americano composta por países onde as línguas oficiais são originadas do latim: português, espanhol e francês. O fato de usarmos uma língua latina nos obriga a recorrer ao latim para redescobrirmos o sentindo de algumas palavras, cujo uso cotidiano acaba ocultando ou confundindo.

Assim, a palavra alegria deriva do latim alacer ou alacris, que para além do sentido imediato de alegre, significa também vivo, esperto, ardente, cheio de entusiasmo ou ardor, características próprias da infância ou da juventude e que agora queremos aproximar da Filosofia.

À primeira vista isso parece difícil, pois a imagem que a Filosofia construiu na modernidade parece não rimar com alegria. Hoje no Orkut temos 46 comunidades relacionados com a busca “eu odeio Filosofia”. A maior delas, conta com a participação de mais de 1800 membros.

Já para “eu amo Filosofia”, surgem 46 comunidades, mas com menos participantes, a maior delas com 757. É fácil notar também que entre esses amantes da Filosofia, grande parte a encara de forma muito diversa, a primeira comunidade, por exemplo, está classificada como "religiões e crenças", ou seja, muito distante do que a Filosofia tenta produzir desde sua origem. Também é possível perceber a Filosofia como modo de vida ligado a um ritmo musical como na comunidade “Eu amo Filosofia reggae”.

É fácil concluir que entre os internautas é mais comum encontrar sentimentos de ódio do que de amor a Filosofia. Provavelmente as pessoas que desenvolveram este tipo de sentimento tiveram experiências desmotivantes com a Filosofia em alguma instituição de ensino. Por isso temos as comunidades “eu odeio aula de Filosofia” ou “eu odeio meu prof de Filosofia”.

O fato é que este incômodo com a Filosofia pode indicar duas coisas. Primeiro, houve um contato com a Filosofia, mas se permaneceu no seu “gosto amargo”, como quando ela destrói nossas certezas e não conseguimos colocar nada no lugar. Segundo, e mais provável, não houve contato com a Filosofia, mas com métodos e estratégias que colocaram para os alunos objetivos impenetráveis, distantes, muitas vezes reduzidos a reprodução de sua história.

O mesmo ocorre com uma série de outros conhecimentos muito mais odiados do que a Filosofia. A campeã da cólera estudantil, é claro, é a Matemática, mas os internautas odeiam mais a Educação Física, Português, Física, Química, História e Geografia do que a Filosofia.
Quem faz isso? A própria escola moderna com seus jogos de verdades e poderes.

Mas existe uma certa contradição em se falar de ódio à Filosofia. A etimologia, estudo da origem da palavra grega philosophia mostra isso, pois philo quer dizer amor e sophia, sabedoria. Amor à sabedoria é uma relação de atração pelo saber, uma relação que proporciona prazer e alegria. Portanto se alguém pensa que odeia a Filosofia ainda não foi apresentado a ela, mas a alguma coisa mascarada de Filosofia. Está confundindo a Filosofia com a didática do professor, com a dificuldade de um texto repleto de palavras estranhas, com as exigências das avaliações, com as práticas que se exercem nas escolas.

Há quem pense ser a Filosofia algo impossível para pessoas pouco instruídas, crianças e jovens e por isso mesmo sempre a apresentam estendendo uma mão fria, como quem conta uma história de terror. Quem procede assim é porque criou certa relação com ela e acredita que todos terão essa mesma impressão. No entanto, a experiência com Filosofia sempre produz novidades, singularidades, diferenças, mas principalmente alegria e nada mais atual do que as palavras do filósofo francês Michel de Montaigne que percebia esse nosso problema já no século XVI:

É estranho que em nosso tempo a Filosofia não seja, até para gente inteligente, mais do que um nome vão e fantástico, sem utilidade nem valor, na teoria como na prática. Creio que isso se deve aos raciocínios capciosos [enganadores] e embrulhados com que lhe atopetaram o caminho. Faz-se muito mal em a pintar como inacessível aos jovens, e em lhe emprestar uma fisionomia severa, carrancuda e temível. Quem lhe pôs tal máscara falsa, lívida [pálida], hedionda [repulsiva, horrível]? Pois não há nada mais alegre, mais vivo e diria quase divertido. Tem ar de festa e folguedo. Não habita onde haja caras tristes e enrugadas(MONTAIGNE, 1972, p. 86).

PICOLI, A. R.

REFERÊNCIAS:
Montaigne, M. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

O vídeo do link abaixo, feito pelo aluno João Héctor do Colégio Estadual do Espírito Santo, ajuda a pensar como seria ficar sem a Filosofia:

http://www.youtube.com/watch?v=nfFsrhZW17Q

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O melhor espelho é o velho amigo

O uso diversificado da Filosofia durante mais de 2500 anos fez com que ela fosse dividida em várias áreas inter-relacionadas. Ética ou Filosofia Moral, Lógica, Metafísica, Filosofia Política, Teoria do Conhecimento, Estética ou Filosofia da Arte, Filosofia da História, História da Filosofia, Filosofia da Ciência ou Epistemologia, Filosofia da Educação, Filosofia Social, Filosofia da Cultura, Filosofia da Religião e mais recentemente a Filosofia da Mente e a Cibercultura.

A ética surgiu da preocupação do ser humano consigo mesmo, de suas dúvidas em determinar suas condutas da melhor maneira possível. Duas palavras gregas marcaram a construção do sentido de ética que podemos associar a um local de proteção, como uma caverna ou casa (êthos), mas também como comportamento ou caráter (éthos) construído de acordo com o que fazemos conosco mesmos em nossas pequenas escolhas do dia-a-dia.
 
Existe um conto muito antigo de um filósofo que estava atravessando uma ponte acompanhado de seus alunos. Enquanto conversavam ele viu um escorpião sendo carregado pelo rio e correu para salvá-lo. Pegou o bicho na mão e quando saía do rio, levou uma picada e o deixou cair novamente na água. Voltou até a margem, pegou um galho e com ele conseguiu tirar o animal da água.
 
Enquanto isso, os alunos começaram a debater o que estava acontecendo. Um deles se dirigiu ao Sábio e disse:
 
Por que o senhor salvou esse ser asqueroso que retribuiu sua ajuda tentando te matar? Qualquer um de nós teria deixado ele morrer afogado.
 
E o filósofo respondeu: ele age de acordo com a natureza dele, vocês de acordo com a maioria e eu de acordo com a minha razão.
 
Podemos observar neste conto a distinção entre a natureza (physis) a opinião (doxa) da maioria, do uso livre da razão (logos) pelo filósofo. O sujeito ético age por iniciativa própria, avalia as situações, os costumes e decide por si mesmo. Ele não é um refém dos seus instintos naturais, e nem do consenso cultural em que vive. Ele avalia e julga cada pequeno ato, pois sabe que são eles que fazem com que nos tornemos melhor do que somos e isso é justamente o propósito da ética. Para isso, é necessário uma atenção e um trabalho constante.
 
Hoje em dia existe muita confusão sobre a ética. Ela não é um código ou lei que determina o que devemos fazer ou ser antecipadamente. Ela é um questionar constante sobre o que estamos sendo e uma procura por formas singulares de existir.
 
Entretanto esse não é um caminho que se percorre sozinho. Os antigos filósofos gregos e romanos davam um valor inestimável à amizade na sua relação ética. A amizade é aquela relação que surge de encontros com pessoas que nos protegem como uma casa (êthos) e que estão prontos a nos alertar quando agimos contra o que há de melhor em nós mesmos e colocamos em risco o nosso bom caráter (éthos). Os nossos amigos são aqueles que gostam de nós não pelo que já somos, mas pela excelência que ainda vamos atingir juntos. Assim, para saber quem você está sendo, conte sempre com a sinceridade desinteressada de um velho amigo.

PICOLI, A.R.

sábado, 16 de janeiro de 2010

O que é a Filosofia ou a Filosofia da lagarta

Para o que pretendo aqui, ela não é um conhecimento, ciência, ou literatura, mas uma atitude de busca, encontrada nos grandes pensadores de nossa história.

Como atitude ela é um comportamento da pessoa frente a uma situação, fenômeno, objeto.

Nesse eterno retorno que ela vive é preciso recolocar a pergunta feita em algum momento por cada um de nós, o que é a Filosofia?

É um movimento de procura pelo diferente, muitas vezes inesperado, mesmo nas coisas aparentemente mais óbvias, próximas e certas.

Mas não é qualquer busca, não é como procurar um objeto que você perdeu, ou tentar lembrar uma informação para uma prova.

Nesse sentido, a filosofia é uma atitude libertadora porque nos livra da prisão do que sabemos e, nesse caso, é sempre um desaprender.

Ao contrário do que muitas vezes é feito em nome dela, a Filosofia não é teoria, muito embora os filósofos usem a teoria para modificar o nosso pensamento e a nossa ação. A teoria e a prática são efeitos necessários da Filosofia.

Outro efeito da Filosofia é a metamorfose: ela possibilita a transformação do que se é em algo melhor, o que demanda um trabalho sobre si mesmo que pode levar a vida toda.

Na antiguidade grega, o filósofo Sócrates dizia que o si mesmo sobre o qual devemos nos ocupar era a nossa alma, nosso interior, hoje conhecido por subjetividade.

Sem aprofundar muito, a subjetividade é o conjunto de pensamentos, sentimentos, desejos, comportamentos e que estão em constante mudança.
Entretanto hoje é necessário integrar o corpo ao si mesmo. É sobre o corpo que se exercem todas as ações que nos oprimem.

O que fazemos com o nosso corpo e o quanto ele é integrado com a nossa subjetividade deve ser um preocupação constante de quem pretende se libertar das consequências que o dualismo corpo/mente e outros equivalentes nos impõem.

Outra coisa interessante na Filosofia é que ela tem um gosto um tanto amargo, que só com a experiência se aprende a apreciar. Em um primeiro momento dá vontade de cuspi-la, mas com o tempo percebemos o quanto ela é saborosa. Nós precisamos de tempo para degustar a Filosofia.

Mas o tempo só não basta, existem pessoas que bebem Filosofia todo dia e não conseguem sentir o seu paladar e muito menos dirigi-la. O que lhes falta então?

A parábola abaixo pode ajudar a pensar isso:

Certa vez um jardineiro construiu um belo jardim, com plantas e flores belíssimas. Com o tempo as plantas cresceram e se multiplicaram e o jardim começou a atrair insetos. Como o jardineiro reconhecia a importância do micro-ecossistema que fez, respeitava também a vida dos insetos. Por um animal em especial ele tinha uma grande admiração: a lagarta. Ele admirava a maneira como as lagartas movimentavam aquele corpo desengonçado pelos ramos das plantas com a única preocupação de se alimentar, crescendo e guardando energia para algo que iria acontecer em breve e que elas não sabiam. Um dia enquanto passeava pelo jardim e disse a uma delas:

- De todos os animais do meu jardim você é a que mais me impressiona, é incrível a sua força de vontade para se movimentar procurando alimento.

Estou muito satisfeito com você.

A lagarta em especial ficou muito satisfeita consigo mesmo e passou a se admirar e valorizar. Um dia o jardineiro estava passeando pelo jardim viu que ele estava ainda mais colorido. Dezenas de borboletas voavam pelas flores e enquanto se alimentavam do néctar, produziam a polinização, recompensando as plantas de que tinham se alimentado com a fecundação. Mas olhando um pouco mais pelos galhos das plantas ele notou que uma delas continuava como lagarta.

Vários dias se passaram e nada da lagarta fazer o casulo. Ele ficou muito preocupado e resolveu perguntar para ela:

- O que aconteceu? Todas as suas irmãs se transformaram em belas borboletas. Por que você continua como lagarta?

Ao que ela respondeu:

-Eu senti uma vontade enorme de construir um casulo, de mudar de vida, de ganhar os ares. Mas você estava tão satisfeito comigo desse jeito que resolvi ficar assim mesma.

Depois desse dia o jardineiro passou a tomar muito cuidado com os elogios.

A filosofia como metamorfose de si mesmo só é possível quando não estamos satisfeitos, quando nos sentimos incomodados. É esse o seu gosto amargo, seu desconforto e estranhamento, mas que pode conduzir a uma vida mais bela, transformadora, significativa e livre.

PICOLI, A. R.